Toda a ação séria e recta do homem é esperança em ato. É-o antes de tudo no sentido de que assim procuramos concretizar as nossas esperanças menores ou maiores: resolver este ou aquele assunto que é importante, para prosseguir na caminhada da vida; com o nosso empenho contribuir a fim de que o mundo se torne um pouco mais luminoso e humano, e assim se abram também as portas para o futuro. Mas o esforço quotidiano pela continuação da nossa vida e pelo futuro da comunidade cansa-nos ou transforma-se em fanatismo, se não nos ilumina a luz daquela grande esperança que não pode ser destruída sequer pelos pequenos fracassos e pela falência em vicissitudes de alcance histórico. Se não podemos esperar mais do que é realmente alcançável de cada vez e de quanto nos seja possível oferecerem as autoridades políticas e económicas, a nossa vida arrisca-se a ficar bem depressa sem esperança. É importante saber: eu posso sempre continuar a esperar, ainda que pela minha vida ou pelo momento histórico que estou a viver aparentemente não tenha mais qualquer motivo para esperar. Só a grande esperança-certeza de que, não obstante todos os fracassos, a minha vida pessoal e a história no seu conjunto estão conservadas no poder indestrutível do Amor e, graças a isso e por isso, possuem sentido e importância, só uma tal esperança pode, naquele caso, dar ainda a coragem de agir e de continuar. Certamente, não podemos « construir » o reino de Deus com as nossas forças; o que construímos permanece sempre reino do homem com todos os limites próprios da natureza humana. O reino de Deus é um dom, e por isso mesmo é grande e belo, constituindo a resposta à esperança. Nem podemos – para usar a terminologia clássica – « merecer » o céu com as nossas obras. Este é sempre mais do que aquilo que merecemos, tal como o ser amados nunca é algo « merecido », mas um dom. Porém, com toda a nossa consciência da « mais valia » do céu, permanece igualmente verdade que o nosso agir não é indiferente diante de Deus e, portanto, também não o é para o desenrolar da história. Podemos abrir-nos nós mesmos e o mundo ao ingresso de Deus: da verdade, do amor e do bem. É o que fizeram os santos que, como « colaboradores de Deus » contribuíram para a salvação do mundo (cf. 1 Cor 3,9; 1 Tes 3,2). Temos a possibilidade de livrar a nossa vida e o mundo dos venenos e contaminações que poderiam destruir o presente e o futuro. Podemos descobrir e manter limpas as fontes da criação e assim, juntamente com a criação que nos precede como dom recebido, fazer o que é justo conforme as suas intrínsecas exigências e a sua finalidade. Isto conserva um sentido, mesmo quando, aparentemente, não temos sucesso ou parecemos impotentes face à hegemonia de forças hostis. Assim, por um lado, da nossa acção nasce esperança para nós e para os outros; mas, ao mesmo tempo, é a grande esperança apoiada nas promessas de Deus que, tanto nos momentos bons como nos maus, nos dá coragem e orienta o nosso agir.
Tal como o agir, também o sofrimento faz parte da existência humana. Este deriva, por um lado, da nossa finitude e, por outro, do volume de culpa que se acumulou ao longo da história e, mesmo actualmente, cresce de modo irreprimível. Certamente é preciso fazer tudo o possível para diminuir o sofrimento: impedir, na medida do possível, o sofrimento dos inocentes; amenizar as dores; ajudar a superar os sofrimentos psíquicos. Todos estes são deveres tanto da justiça como da caridade, que se inserem nas exigências fundamentais da existência cristã e de cada vida verdadeiramente humana. Na luta contra a dor física conseguiu-se realizar grandes progressos; mas o sofrimento dos inocentes e inclusive os sofrimentos psíquicos aumentaram durante os últimos decénios. Devemos – é verdade – fazer tudo por superar o sofrimento, mas eliminá-lo completamente do mundo não entra nas nossas possibilidades, simplesmente porque não podemos desfazer-nos da nossa finitude e porque nenhum de nós é capaz de eliminar o poder do mal, da culpa que – como constatámos – é fonte contínua de sofrimento. Isto só Deus o poderia fazer: só um Deus que pessoalmente entra na história fazendo-Se homem e sofre nela. Nós sabemos que este Deus existe e que por isso este poder que « tira os pecados do mundo » (Jo 1,29) está presente no mundo. Com a fé na existência deste poder, surgiu na história a esperança da cura do mundo. Mas, trata-se precisamente de esperança, e não ainda de cumprimento; esperança que nos dá a coragem de nos colocarmos da parte do bem, inclusive onde a realidade parece sem esperança, cientes de que, olhando o desenrolar da história tal como nos aparece exteriormente, o poder da culpa vai continuar uma presença terrível ainda no futuro.
Voltemos ao nosso tema. Podemos procurar limitar o sofrimento e lutar contra ele, mas não podemos eliminá-lo. Precisamente onde os homens, na tentativa de evitar qualquer sofrimento, procuram esquivar-se de tudo o que poderia significar padecimento, onde querem evitar a canseira e o sofrimento por causa da verdade, do amor, do bem, descambam numa vida vazia, na qual provavelmente já quase não existe a dor, mas experimenta-se muito mais a obscura sensação da falta de sentido e da solidão. Não é o evitar o sofrimento, a fuga diante da dor, que cura o homem, mas a capacidade de aceitar a tribulação e nela amadurecer, de encontrar o seu sentido através da união com Cristo, que sofreu com infinito amor. Neste contexto, desejo citar algumas frases de uma carta do mártir vietnamita Paulo Le-Bao-Thin († 1857), onde é clara esta transformação do sofrimento mediante a força da esperança que provém da fé. « Eu, Paulo, prisioneiro pelo nome de Cristo, quero falar-vos das tribulações que suporto cada dia, para que, inflamados no amor de Deus, comigo louveis o Senhor, porque é eterna a sua misericórdia (Sal 136/135). Este cárcere é realmente a imagem do inferno eterno: além de suplícios de todo o género, tais como algemas, grilhões, cadeias de ferro, tenho de suportar o ódio, as agressões, calúnias, palavras indecorosas, repreensões, maldades, juramentos falsos, e, além disso, as angústias e a tristeza. Mas Deus, que outrora libertou os três jovens da fornalha ardente, está sempre comigo e libertou-me destas tribulações, convertendo-as em suave doçura, porque é eterna a sua misericórdia. Imerso nestes tormentos, que costumam aterrorizar os outros, pela graça de Deus sinto-me alegre e contente, porque não estou só, mas estou com Cristo. [...] Como posso eu suportar este espectáculo, ao ver todos os dias os imperadores, mandarins e seus guardas blasfemar o vosso santo nome, Senhor, que estais sentado sobre os Querubins (cf. Sal 80/79, 2) e os Serafins? Vede como a vossas cruz é calcada aos pés dos pagãos! Onde está a vossa glória? Ao ver tudo isto, sinto inflamar-se o meu coração no vosso amor e prefiro ser dilacerado e morrer em testemunho da vossa infinita bondade. Mostrai, Senhor, o vosso poder, salvai-me e amparai-me, para que na minha fraqueza se manifeste a vossa força e seja glorificada diante dos gentios [...] Ouvindo tudo isto, caríssimos irmãos, tende coragem e alegrai-vos, dai graças eternamente a Deus, de quem procedem todos os bens, bendizei comigo ao Senhor, porque é eterna a sua misericórdia [...] Escrevo todas estas coisas, para que estejam unidas a vossa e a minha fé. No meio da tempestade, lanço a âncora que me permitirá subir até ao trono de Deus: a esperança viva que está no meu coração ».Esta é uma carta do « inferno ». Nela se mostra todo o horror de um campo de concentração, onde aos tormentos infligidos pelos tiranos se vem juntar o desencadeamento do mal nas mesmas vítimas que, deste modo, se tornam novos instrumentos da crueldade dos algozes. É uma carta do inferno, mas nela tem cumprimento a palavra do Salmo: « Se subir aos céus, lá Vos encontro, se descer aos infernos, igualmente. [...] Se eu disser: “ao menos as trevas me cobrirão”, [...] nem sequer as trevas serão bastante escuras para Vós, e a noite será clara como o dia, tanto faz a luz como as trevas » (Sl139/138, 8-12; cf. também Sal 23//22, 4). Cristo desceu aos « infernos » ficando assim perto de quem é nele lançado, transformando para ele as trevas em luz. O sofrimento, os tormentos continuam terríveis e quase insuportáveis. Surgiu, porém, a estrela da esperança, a âncora do coração chega até o trono de Deus. Não se desencadeia o mal no homem, mas vence a luz: o sofrimento – sem deixar de o ser – torna-se, apesar de tudo, canto de louvor.
A grandeza da humanidade determina-se essencialmente na relação com o sofrimento e com quem sofre. Isto vale tanto para o indivíduo como para a sociedade. Uma sociedade que não consegue aceitar os que sofrem e não é capaz de contribuir, mediante a com-paixão, para fazer com que o sofrimento seja compartilhado e assumido mesmo interiormente é uma sociedade cruel e desumana. A sociedade, porém, não pode aceitar os que sofrem e apoiá-los no seu sofrimento, se os próprios indivíduos não são capazes disso mesmo; e, por outro lado, o indivíduo não pode aceitar o sofrimento do outro, se ele pessoalmente não consegue encontrar no sofrimento um sentido, um caminho de purificação e de amadurecimento, um caminho de esperança. Aceitar o outro que sofre significa, de facto, assumir de alguma forma o seu sofrimento, de tal modo que este se torna também meu. Mas, precisamente porque agora se tornou sofrimento compartilhado, no qual há a presença do outro, este sofrimento é penetrado pela luz do amor. A palavra latina con-solatio, consolação, exprime isto mesmo de forma muito bela sugerindo um estar-com na solidão, que então deixa der ser solidão. Mas, a capacidade de aceitar o sofrimento por amor do bem, da verdade e da justiça é também constitutiva da grandeza da humanidade, porque se, em definitiva, o meu bem-estar, a minha incolumidade é mais importante do que a verdade e a justiça, então vigora o domínio do mais forte; então reinam a violência e a mentira. A verdade e a justiça devem estar acima da minha comodidade e incolumidade física, senão a minha própria vida torna-se uma mentira. E, por fim, também o « sim » ao amor é fonte de sofrimento, porque o amor exige sempre expropriações do meu eu, nas quais me deixo podar e ferir. O amor não pode de modo algum existir sem esta renúncia mesmo dolorosa a mim mesmo, senão torna-se puro egoísmo, anulando-se deste modo a si próprio enquanto tal.
Sofrer com o outro, pelos outros; sofrer por amor da verdade e da justiça; sofrer por causa do amor e para se tornar uma pessoa que ama verdadeiramente: estes são elementos fundamentais de humanidade, o seu abandono destruiria o mesmo homem. Entretanto levanta-se uma vez mais a questão: somos capazes disto? O outro é suficientemente importante, para que por ele eu me torne uma pessoa que sofre? Para mim, a verdade é tão importante que compensa o sofrimento? A promessa do amor é assim tão grande que justifique o dom de mim mesmo? Na história da humanidade, cabe à fé cristã precisamente o mérito de ter suscitado no homem, de maneira nova e a uma nova profundidade, a capacidade dos referidos modos de sofrer que são decisivos para a sua humanidade. A fé cristã mostrou-nos que verdade, justiça, amor não são simplesmente ideais, mas realidades de imensa densidade. Com efeito, mostrou-nos que Deus – a Verdade e o Amor em pessoa – quis sofrer por nós e connosco. Bernardo de Claraval cunhou esta frase maravilhosa:Impassibilis est Deus, sed non incompassibilis – Deus não pode padecer, mas pode-se compadecer. O homem tem para Deus um valor tão grande que Ele mesmo Se fez homem para poder padecer com o homem, de modo muito real, na carne e no sangue, como nos é demonstrado na narração da Paixão de Jesus. A partir de lá entrou em todo o sofrimento humano alguém que partilha o sofrimento e a sua suportação; a partir de lá se propaga em todo o sofrimento a con-solatio, a consolação do amor solidário de Deus, surgindo assim a estrela da esperança. Certamente, nos nossos inúmeros sofrimentos e provas sempre temos necessidade também das nossas pequenas ou grandes esperanças – de uma visita amiga, da cura das feridas internas e externas, da solução positiva de uma crise, etc. Nas provações menores, estes tipos de esperança podem mesmo ser suficientes. Mas, nas provações verdadeiramente graves, quando tenho de assumir a decisão definitiva de antepor a verdade ao bem-estar, à carreira e à propriedade, a certeza da verdadeira grande esperança, de que falámos, faz-se necessária. Para isto, precisamos também de testemunhas, de mártires, que se entregaram totalmente, para que no-lo manifestem, dia após dia. Temos necessidade deles para preferirmos, mesmo nas pequenas alternativas do dia-a-dia, o bem à comodidade, sabendo que precisamente assim vivemos a vida de verdade. Digamo-lo uma vez mais: a capacidade de sofrer por amor da verdade é medida de humanidade. No entanto, esta capacidade de sofrer depende do género e da grandeza da esperança que trazemos dentro de nós e sobre a qual construímos. Os santos puderam percorrer o grande caminho do ser-homem no modo como Cristo o percorreu antes de nós, porque estavam repletos da grande esperança.
Gostaria de acrescentar ainda uma pequena observação, não sem importância para os acontecimentos de todos os dias. Fazia parte duma forma de devoção – talvez menos praticada hoje, mas não vai ainda há muito tempo que era bastante difundida – a ideia de poder « oferecer » as pequenas canseiras da vida quotidiana, que nos ferem com frequência como alfinetadas mais ou menos incómodas, dando-lhes assim um sentido. Nesta devoção, houve sem dúvida coisas exageradas e talvez mesmo estranhas, mas é preciso interrogar-se se não havia de algum modo contido nela algo de essencial que poderia servir de ajuda. O que significa « oferecer »? Estas pessoas estavam convencidas de poderem inserir no grande com-padecer de Cristo as suas pequenas canseiras, que entravam assim, de algum modo, a fazer parte do tesouro de compaixão de que o género humano necessita. Deste modo, também as mesmas pequenas moléstias do dia-a-dia poderiam adquirir um sentido e contribuir para a economia do bem, do amor entre os homens. Deveríamos talvez interrogar-nos se verdadeiramente isto não poderia voltar a ser uma perspectiva sensata também para nós.
Carta Encíclica do Sumo Sacerdote Bento XV sobre a Esperança Cristã