quarta-feira, 22 de junho de 2011

Caritas in Veritate - Bento XVI - Populorum Progressio



Na Populorum progressio, Paulo VI quis dizer-nos, antes de mais nada, que o progresso é, na sua origem e na sua essência, uma vocação: Nos desígnios de Deus, cada homem é chamado a desenvolver-se, porque toda a vida é vocação. É precisamente este facto que legitima a intervenção da Igreja nas problemáticas do desenvolvimento. Se este tocasse apenas aspectos técnicos da vida do homem, e não o sentido do seu caminhar na história juntamente com seus irmãos, nem a individuação da meta de tal caminho, a Igreja não teria título para falar. Mas Paulo VI, como antes dele Leão XIII na Rerum novarum, estava consciente de cumprir um dever próprio do seu serviço quando iluminava com a luz do Evangelho as questões sociais do seu tempo.

Dizer que o desenvolvimento é vocação equivale a reconhecer, por um lado, que o mesmo nasce de um apelo transcendente e, por outro, que é incapaz por si mesmo de atribuir-se o próprio significado último. Não é sem motivo que a palavra vocação volta a aparecer noutra passagem da encíclica, onde se afirma: Não há, portanto, verdadeiro humanismo senão o aberto ao Absoluto, reconhecendo uma vocação que exprime a ideia exacta do que é a vida humana. Esta visão do desenvolvimento é o coração da Populorum progressio e motiva todas as reflexões de Paulo VI sobre a liberdade, a verdade e a caridade no desenvolvimento. É também a razão principal por que tal encíclica continua actual nos nossos dias.

17. A vocação é um apelo que exige resposta livre e responsável. O desenvolvimento humano integral supõe a liberdade responsável da pessoa e dos povos: nenhuma estrutura pode garantir tal desenvolvimento, prescindindo e sobrepondo-se à responsabilidade humana. Os messianismos fascinantes, mas construtores de ilusões fundam sempre as próprias propostas na negação da dimensão transcendente do desenvolvimento, seguros de o terem inteiramente à sua disposição. Esta falsa segurança converte-se em fraqueza, porque implica a sujeição do homem, reduzido à categoria de meio para o desenvolvimento, enquanto a humildade de quem acolhe uma vocação se transforma em verdadeira autonomia, porque torna a pessoa livre. Paulo VI não tem dúvidas sobre a existência de obstáculos e condicionamentos que refreiam o desenvolvimento, mas está seguro também de que cada um, sejam quais forem as influências que sobre ele se exerçam, permanece o artífice principal do seu êxito ou do seu fracasso. Esta liberdade diz respeito não só ao desenvolvimento que usufruímos, mas também às situações de subdesenvolvimento, que não são fruto do acaso nem de uma necessidade histórica, mas dependem da responsabilidade humana. É por isso que os povos da fome se dirigem hoje, de modo dramático, aos povos da opulência. Também isto é vocação, um apelo que homens livres dirigem a homens livres em ordem a uma assunção comum de responsabilidade. Viva era, em Paulo VI, a percepção da importância das estruturas económicas e das instituições, mas era igualmente clara nele a noção da sua natureza de instrumentos da liberdade humana. Somente se for livre é que o desenvolvimento pode ser integralmente humano; apenas num regime de liberdade responsável, pode crescer de maneira adequada.

18. Além de requerer a liberdade, o desenvolvimento humano integral enquanto vocação exige também que se respeite a sua verdade. A vocação ao progresso impele os homens a realizar, conhecer e possuir mais, para ser mais. Mas aqui levanta-se o problema: que significa ser mais ? A tal pergunta responde Paulo VI indicando a característica essencial do desenvolvimento autêntico : este deve ser integral, quer dizer, promover todos os homens e o homem todo. Na concorrência entre as várias concepções do homem, presentes na sociedade actual ainda mais intensamente do que na de Paulo VI, a visão cristã tem a peculiaridade de afirmar e justificar o valor incondicional da pessoa humana e o sentido do seu crescimento. A vocação cristã ao desenvolvimento ajuda a empenhar-se na promoção de todos os homens e do homem todo. Escrevia Paulo VI: O que conta para nós é o homem, cada homem, cada grupo de homens, até se chegar à humanidade inteira. A fé cristã ocupa-se do desenvolvimento sem olhar a privilégios nem posições de poder nem mesmo aos méritos dos cristãos — que sem dúvida existiram e existem, a par de naturais limitações —, mas contando apenas com Cristo, a Quem há-de fazer referência toda a autêntica vocação ao desenvolvimento humano integral. O Evangelho é elemento fundamental do desenvolvimento, porque lá Cristo, com a própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo. Instruída pelo seu Senhor, a Igreja perscruta os sinais dos tempos e interpreta-os, oferecendo ao mundo
o que possui como próprio: uma visão global do homem e da humanidade. Precisamente porque Deus pronuncia o maior sim ao homem, este não pode deixar de se abrir à vocação divina para realizar o próprio desenvolvimento. A verdade do desenvolvimento consiste na sua integralidade: se não é desenvolvimento do homem todo e de todo o homem, não é verdadeiro desenvolvimento. Esta é a mensagem central da Populorum progressio, válida hoje e sempre. O desenvolvimento humano integral no plano natural, enquanto resposta a uma vocação de Deus criador, procura a própria autenticação num humanismo transcendente, que leva [o homem] a atingir a sua maior plenitude: tal é a finalidade suprema do desenvolvimento pessoal. Portanto, a vocação cristã a tal desenvolvimento compreende tanto o plano natural como o plano sobrenatural, motivo por que, « quando Deus fica eclipsado, começa a esmorecer a nossa capacidade de reconhecer a ordem natural, o fim e o ‘‘bem''.

19. Finalmente, a concepção do desenvolvimento como vocação inclui nele a centralidade da caridade. Paulo VI observava, na encíclica Populorum progressio, que as causas do subdesenvolvimento não são primariamente de ordem material, convidando-nos a procurá-las noutras dimensões do homem. Em primeiro lugar, na vontade, que muitas vezes descuida os deveres da solidariedade. Em segundo, no pensamento, que nem sempre sabe orientar convenientemente o querer; por isso, para a prossecução do desenvolvimento, servem pensadores capazes de reflexão profunda, em busca de um humanismo novo, que permita ao homem moderno o encontro de si mesmo. E não é tudo; o subdesenvolvimento tem uma causa ainda mais importante do que a carência de pensamento: é a falta de fraternidade entre os homens e entre os povos. Esta fraternidade poderá um dia ser obtida pelos homens simplesmente com as suas forças? A sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos. A razão, por si só, é capaz de ver a igualdade entre os homens e estabelecer uma convivência cívica entre eles, mas não consegue fundar a fraternidade. Esta tem origem numa vocação transcendente de Deus Pai, que nos amou primeiro, ensinando-nos por meio do Filho o que é a caridade fraterna. Ao apresentar os vários níveis do processo de desenvolvimento do homem, Paulo VI colocava no vértice, depois de ter mencionado a fé, a unidade na caridade de Cristo que nos chama a todos a participar como filhos na vida do Deus vivo, Pai de todos os homens.

20. Abertas pela Populorum progressio, estas perspectivas permanecem fundamentais para dar amplitude e orientação ao nosso compromisso a favor do desenvolvimento dos povos. E a Populorum progressio sublinha repetidamente a urgência das reformas, pedindo para que, à vista dos grandes problemas da injustiça no desenvolvimento dos povos, se actue com coragem e sem demora. Esta urgência é ditada também pela caridade na verdade. É a caridade de Cristo que nos impele: caritas Christi urget nos (2 Cor 5, 14). A urgência não está inscrita só nas coisas, não deriva apenas do encalçar dos acontecimentos e dos problemas, mas também do que está em jogo: a realização de uma autêntica fraternidade. A relevância deste objectivo é tal que exige a nossa disponibilidade para o compreendermos profundamente e mobilizarmo-nos concretamente, com o coração, a fim de fazer avançar os actuais processos económicos e sociais para metas plenamente humanas.