“A morte nivela todas as coisas e perante ela o egoísmo e o altruísmo são de igual modo privados de sentido. (…) O Reino de Deus é o reino da vida que triunfa através da ressurreição: nela, portanto, reside o bem real, cumprido, definitivo. (…) A verdade da Ressurreição de Cristo é uma verdade total, completa – uma verdade não só da fé, mas também uma verdade da razão. Se Cristo não tivesse ressuscitado, (…) o mundo aparecer-nos-ia uma coisa absurda, como o reino do mal, do engano, da morte.”


Com estas palavras, Vladimir Soloviev, no seu “Breve conto sobre o Anticristo”, descreve o evento pascal. Há cerca de cem anos, em seu tempo, como no nosso, era posto em questão o sentido de tudo, e as correntes do niilismo, do existencialismo, do marxismo e, por fim, do relativismo se estabeleceram de tal modo que o homem moderno se torna cada vez menos capaz de viver a verdade. Não se trata de afirmar verdades, mas de se situar na verdade sobre a existência. E há uma raiz de iniqüidade muito entranhada em nossa cultura que Gramsci conseguiu emoldurar e enaltecer nos corações humanos: “a verdade não existe”. É como se no mundo existisse a matéria, e as outras questões fossem criações humanas, moldáveis de acordo com o beneplácito de maiorias convenientes ou de minorias extremamente ruidosas e ideologicamente influentes. Diante de tal quadro, observamos ao nosso redor um crescente espaço para o desespero ou para aquela esperança nas coisas que são corroídas ou amputadas de nossa existência. E Deus, nosso Deus, já conhecia o nosso coração enganador… Mas, Deus, por que assim?


E, no entanto, Deus permite que as coisas aconteçam dessa forma. Pensemos primeiramente nos seus filhos, que somos, como Igreja, enxertados na Videira, que é Cristo. Diante desse quadro, somos o “povo sacerdotal, a nação santa, o povo que Ele escolheu para anunciar as suas obras admiráveis”. Somos a “nação que o Senhor escolheu por sua herança”. Depois das celebrações da Semana Santa, vimos uma noite, aquela longa noite que não parecia passar: Jesus, esperança daquele pequeno rebanho, estava morto. Já não se tratava mais de uma esperança, mas de uma saudade, de uma nostalgia… Pedro carregava em si uma culpa que parecia imperdoável, os Doze, o preço de sua própria covardia. Vimos, entretanto, o fogo se acender, a lua cheia a testemunhar algo inaudito e as velas dos fiéis, símbolos de fé, serem acesas naquele fogo novo que se acendia no alto da noite. Quando essas velas estavam em nossas mãos, eram como que pequenos luzeiros de esperança que se acendiam, mechas fumegantes, porque a Luz voltou a brilhar.


Não nos enganemos: a esperança dos apóstolos antes da Páscoa do Senhor morreu. Era ainda uma esperança intra-histórica, uma esperança, por assim dizer, mundana, humana, sem abertura real para o que transcende e permanece. A esperança dos apóstolos e de todos aqueles que de alguma forma creram em Jesus durante sua passagem por este mundo morreu em sua Paixão. Nada os poderia erguer. Eles sabiam que poderiam voltar apostar nos meios de outrora, mas também estavam cientes de que nada mais responderia a seus anseios mais profundos do que aquele que havia sido o seu Rabi. O que mais restava? Esconder-se no Cenáculo? Pescar, como outrora, e, pior, sem nenhum sucesso? Lembrava-nos já o profeta: “bebeis água, mas não matais a sede; ajuntais dinheiro, mas em saco roto”.


Pois bem, aquilo que aconteceu com os apóstolos foi algo inaudito, completamente diferente do que o homem pode compreender. Homens aprisionados pelo medo e pela desesperança tornam-se, após aqueles encontros com Jesus, capazes de ir até as últimas conseqüências, anunciando a grandiosidade desse acontecimento: “este Jesus a quem vós matastes, Deus o ressuscitou dos mortos, (…) constituindo-o Senhor e Cristo”.



E Deus permite que isso aconteça dessa forma por um motivo: “para que, em tudo, seja Ele glorificado”. Sim, em tudo. Se algo restasse de esperança humana intra-histórica, ainda não seria algo que glorificasse totalmente a Deus. Permite que isso aconteça para que se perceba por todo lugar que “a mão direita do Senhor fez maravilhas”, ou seja, foi unicamente por sua força, sua potência, seu beneplácito, que o conteúdo da história foi resgatado, e seu rumo, completamente reordenado.


Ele pôde ser tocado, comeu e bebeu com eles, realizou todos os gestos pelos quais se tornara inesquecível a memória do Rabi. Porém, a partir de então, quando o Rabi ressuscitado dá graças pelo pão e pelo vinho, distribui-lhes e lhes abre os olhos e o coração, a memória do Rabi não é simplesmente inesquecível, mas presente. NEle, ressuscitado dentre os mortos, a lembrança fatídica do morte é algo que aponta para a eternidade, porque o tempo, este nosso tempo, pelo qual Jesus passou também, foi assumido na eternidade. E mais, nessa hora, Jesus não é visto simplesmente o Rabi, o Mestre, mas as palavras pelas quais os Apóstolos lhe compreendem de agora em diante, ao verem ressurgida sua esperança, ao verem que a morte e o desespero não têm a última palavra, ao perceberem que as ondas do mar já não metem medo, mas é possível caminhar sobre elas, seja lá que mar venha a se cogitar, compreendem o Kyrios (Senhor) e o Theos (Deus). Somente uma ação típica do Deus que parecia se manter tão silencioso até ali, de tal modo que reavivasse a memória dos apóstolos a algo tão grandioso, ou mais ainda do que a travessia do Mar Vermelho ou do que o retorno do Exílio de Babilônia, poderia oferecer a possibilidade para aquilo que seria impossível: o remédio contra a morte.


Eis, pois, como contemplamos aquele Jesus como Senhor e Cristo. “Era preciso que o Cristo sofresse para entrar em sua glória”. Sofrendo, Ele revelou o sentido de nossa vacuidade, assim como revelara o sentido das Escrituras de Israel. Hoje, no mundo já vislumbrado por Soloviev, encontramos certo anuviamento do sensus Dei, aquilo que nosso Catecismo da Igreja Católica chama de virtude da religião. Numa das orações da Igreja, lembramos do Cristo e de sua Igreja como plenitude de toda religião. Cardeal Giacomo Biffi, em “O Enigma da Existência e o Acontecimento Cristão”, lembra-nos de que “o Cristianismo, em primeiro lugar e de per se, não pode ser reduzido a um sistema de convicções, de preceitos, de ritos, que interpreta e regula as relações entre as criaturas e o Criador. Quer dizer, embora a frase possa parecer paradoxal, em primeiro lugar e de per se, o Cristianismo não pode ser reduzido a “uma religião”: colocá-lo entre as religiões (mesmo que apenas por razões de sistematização ou de método, ou com a boa intenção de favorecer o diálogo interreligioso), se não se conhece a intrínseca ambigüidade de relacionamento, e muito menos o seu significado somente analógico,significa deturpá-lo e impedir sua autêntica compreensão.”


A mais eficaz maneira que Deus encontrou de se comunicar aos homens, de comunicar sua própria vida, sua plenitude, sua eternidade, foi permitindo que tudo isso acontecesse ao Filho. Ao tocar nossa realidade, ele toca nossas feridas, nossa escuridão, nossa falta de sentido. Se dermos oportunidade ao Espírito Santo, Dom da Páscoa de Nosso Senhor, Ele nos poderá abrir a porta do aprisco de Deus, abrir o próprio coração de Deus para nós, onde poderemos nos embeber da graça, através dos sacramentos. Em cada dia, cada gesto, cada palavra, o Pastor, que estará conosco todos os dias, nos conduzirá a entrar e sair e, na verdade, realizar aquilo mesmo que Ele o fez, entrar no tempo, sem sair da eternidade, entrar na história, com toda sua lama, sem perder de vista o coração, os pensamentos e as decisões de Deus.


Mas, meus caros, isso só será possível se levarmos a sério a moção do Espírito e a Pessoa de Jesus Cristo. Certo tipo de “teologia” tentam fazer uma série de acrobacias para dizer que Jesus ressuscitou como idéia ou como experiência mística. Essas idéias existem desde os tempos apostólicos e não fazem parte da transmissão do testemunho dos Apóstolos. Diz-nos São Pedro que Ele se deu a conhecer “a nós, que comemos e bebemos com Ele”. A Igreja repete essas palavras toda manhã de Domingo no Ofício de Laudes do Tempo Pascal. De fato, Ele apareceu com a sua carne (que é a nossa carne, desde quando se encarnou), ressuscitada dentre os mortos. Ele, ressuscitado, foi recebido pelos discípulos de Emaús em casa e realizou a Eucaristia. Em seguida, apareceu aos Doze, deu-lhes inclusive a tocar, para que qualquer possível sombra de dúvida pudesse, através do anúncio evangélico, ser fonte de fé para aqueles que se deixam tocar pelo Espírito de Deus.


Assim, se grandes são as sombras do nosso tempo, se “o mundo nos aparece como coisa absurda, como o Reino do mal, do engano, da morte”, não é à toa: é porque não se acredita na Luz que brilha no meio das trevas. Acredita-se em qualquer ideologia, põe-se o homem fechado em si mesmo no centro de tudo, e a fé, toda fé, que assim se dispõe em acreditar em qualquer coisa e, ao mesmo tempo, em nada, é vã, nos dizeres de São Paulo: “se Cristo não ressuscitou, vã é nossa fé”.


Eis o que ela, a fé que brota do Mistério Pascal, ou a falta dela, pode fazer em nossos corações e no universo inteiro. Eis o que podemos viver, cercados do regaço do coração de Deus, que “encheu a terra inteira de sua misericórdia e caridade”.


Um Santo Tempo Pascal a todos!!!


Pouso Alegre - MG, Brasil - Ir. Gregório de Nissa, Obl. OSB