quinta-feira, 21 de junho de 2012

Como Interpretar a Bíblia segundo a Fé da Igreja




A Palavra de Deus é viva e eficaz (Heb 4, 12)


O problema hermenêutico, onde se inserem a atualização da Palavra de Deus e, ao mesmo tempo, a inculturação, é uma questão delicada e importante. Deus, com efeito, propõe à pessoa não uma informação qualquer, mais ou menos curiosa e nem mesmo de ordem meramente humana ou científica, mas comunica-lhe a sua Palavra de verdade e de salvação, o que exige da parte de quem escuta uma compreensão inteligente, vital, responsável e, portanto, actual. Isso comporta o duplo movimento de reconhecer o verdadeiro sentido da Palavra dita ou escrita, tal como o Senhor a comunica através dos autores sagrados e, ao mesmo tempo, exige que a Palavra seja significativa para quem a escuta também hoje.

À escuta da experiência

Das respostas dos Bispos conclui-se que a interpretação da Palavra, não obstante as aparências em contrário, é acessível. Há muitos cristãos que, em comunidade ou singularmente, perscrutam a Palavra de Deus, dispostos a compreender o que Deus diz e a obedecer-Lhe prontamente. Pois bem, esta disponibilidade da fé é para a Igreja uma possibilidade preciosa para tornar possível uma correta compreensão e atualização do Texto Sagrado. Hoje, esta oportunidade (kairòs) tem, de certo modo, ainda mais valor porque se abre um novo confronto entre a Palavra de Deus e as ciências do homem, de modo especial no âmbito da investigação filosófica, científica e histórica. Deste contato entre Palavra e cultura advém uma grande riqueza de verdade e de valores sobre Deus, o homem e as coisas. A razão, portanto, interpela a fé e é levada por esta a colaborar para uma verdade e vida em consonância com a Revelação de Deus e as expectativas da humanidade.
Mas também não faltam os riscos de uma interpretação arbitrária e redutora, resultantes sobretudo do fundamentalismo, que faz com que, por um lado, se manifeste o desejo de permanecer fiéis ao Texto, mas, por outro, se ignore a própria natureza dos textos, caindo em erros graves e até gerando conflitos inúteis.  Existem também as chamadas leituras ideológicas da Bíblia, fruto de pre-compreensões rígidas de ordem espiritual ou social e político ou simplesmente humanas, a que falta o suporte da fé (cf. 2 Pt 1, 19-20; 3, 16), até formas de contraposição e separação entre a forma escrita, atestada antes de mais na Bíblia, a forma viva do anúncio e a experiência de vida dos crentes. Nota-se, em geral, um conhecimento fraco ou impreciso das regras hermenêuticas da Palavra.

O sentido da Palavra de Deus e o caminho para encontrá-lo

À luz do Concílio Vaticano II e do Magistério sucessivo, alguns aspectos parecem carecer hoje de uma atenção e reflexão específicas, em vista de uma adequada comunicação pastoral: a Bíblia, Livro de Deus e do homem, deve ser lida unificando corretamente o sentido histórico-literal e o sentido teológico-espiritual, ou mais simplesmente sentido espiritual. A citada Nota da Pontifícia Comissão Bíblica dá, a propósito, a seguinte definição: «Como regra geral, podemos definir o sentido espiritual, entendido segundo a fé cristã, como o sentido expresso pelos textos bíblicos, quando lidos sob a influência do Espírito Santo no contexto do mistério pascal de Cristo e da vida nova que dele deriva. Este contexto existe realmente. O Novo Testamento reconhece que nele se cumprem as Escrituras. É normal, portanto, reler as Escrituras à luz deste novo contexto, o da vida no Espírito». 
Isso significa que, para uma exegese correta, é necessário o método histórico-crítico, convenientemente enriquecido de outras formas de abordagem, mas para alcançar o sentido total da Escritura é necessário servir-se dos critérios teológicos, repropostos pela Dei Verbum: «conteúdo e unidade de toda a Escritura, Tradição viva de toda a Igreja, analogia da fé» (DV 12). Neste ponto, sente-se hoje a necessidade de uma aprofundada reflexão teológica e pastoral para formar as nossas comunidades numa inteligência reta e frutuosa. Diz o Papa Bento XVI: «É meu grande desejo que os teólogos aprendam a ler e a amar a Escritura como, segundo a Dei Verbum, quis o Concílio: que vejam a unidade interior da Escritura – a que a “exegese canónica” (que certamente ainda se encontra num estádio inicial) hoje ajuda –, e que depois se faça dela uma leitura espiritual, que não é uma prática exterior de carácter edificante, mas é antes um mergulhar interiormente na presença da Palavra. Considero uma tarefa muito importante fazer algo nesse sentido: contribuir para que, a par, com e na exegese histórico-crítica, se faça verdadeiramente uma introdução à Escritura viva como Palavra de Deus atual».

Consequências pastorais

O povo de Deus tem de ser educado para descobrir esse grande horizonte, que é a Palavra de Deus, evitando complicar a leitura da Bíblia. Sirva a verdade de que as coisas mais importantes na Bíblia são também as mais diretamente ligadas à existência, como é a vida de Jesus. Recordamos alguns pontos cruciais para uma correta interpretação do Livro Sagrado.
a. Antes de mais, recorda-se a interpretação da Palavra de Deus, feita todas as vezes que a Igreja se reúne para celebrar os divinos mistérios. A propósito, a Introdução ao Lecionário, que é proclamado na Eucaristia, recorda: «Como o novo povo de Deus, por vontade do próprio Cristo, se encontra diversificado numa admirável diversidade de membros, vários são também os ofícios e as funções que competem a cada um relativamente à Palavra de Deus: assim, os fiéis escutam e meditam a palavra, mas só a explicam aqueles a quem, pela sagrada Ordenação, compete a função do magistério, ou aqueles a quem se confia o exercício deste ministério. Deste modo, a Igreja, na sua doutrina, na sua vida e no seu culto, perpetua e transmite a todas as gerações tudo o que ela mesma é e tudo o que crê, de forma que, no decorrer dos séculos, tende continuamente para a plenitude da verdade divina, até que nela tenha plena realização a Palavra de Deus».

b. Convém observar que «o sentido espiritual não deve ser confundido com as interpretações subjetivas ditadas pela imaginação ou pela especulação intelectual». Esse provém de «três níveis de realidade: o texto bíblico (no seu sentido literal), o mistério pascal e as presentes circunstâncias de vida no Espírito». Há que partir, em todo o caso, do texto bíblico, como primário e insubstituível também na ação pastoral.

c. Reconhecendo que a Nota da Pontifícia Comissão Bíblica, A interpretação da Bíblia na Igreja, geralmente não passou do círculo dos especialistas, haverá que empenhar-se em ajudar os leitores crentes a conhecer as leis elementares para uma abordagem do texto bíblico. São muito válidos os subsídios preparados para o efeito.

d. Nessa perspectiva, tenham-se em conta, retamente compreendidas e recuperadas, a extraordinária exegese dos Padres e a grande intuição medieval dos “quatro sentidos da Escritura”, que ainda não perderam o seu interesse. Não se transcurem as diversas ressonâncias e tradições que a Bíblia provoca na vida do povo de Deus, nas figuras dos Santos, dos mestres espirituais, das testemunhas. Dê-se também atenção ao contributo das ciências teológicas e humanas. Também a “história dos efeitos” (Wirkungsgeschichte), sobretudo na arte, pode ser um testemunho fecundo de leitura espiritual. Uma vez que a Bíblia hoje é lida também pelos não crentes, que realçam o seu valor antropológico, uma interpretação correta desse aspecto pode ser enriquecedora. A Sagrada Escritura deve ser lida em comunhão com a Igreja de todos os lugares e tempos, com as grandes testemunhas da Palavra, desde os primeiros Padres aos Santos e ao Magistério actual.

e. Destaque-se o pedido feito ao Sínodo de não só enfrentar os problemas clássicos da Bíblia, mas também meter em relação com ela os problemas atuais, como a bioética e a inculturação. Podemos dizê-lo com uma expressão frequente dos grupos bíblicos: “Como ir da vida ao texto e do texto à vida?” Ou ainda “Como ler a Bíblia com a vida e a vida com a Bíblia?”.

f. Assinala-se, do ponto de vista da comunicação da fé, um novo problema da hermenêutica bíblica. Diz respeito não só à compreensão da linguagem bíblica, mas também ao conhecimento da cultura atual, cada vez menos ligada à Palavra oral ou escrita e mais orientada para uma cultura eletrônica, o que pode tornar a proclamação tradicional da Palavra tediosa aos ouvintes, imersos como estão nas técnicas informáticas.
Vaticano