É conhecida a sentença que, com
pequenas variantes, afirma: «Família sadia, sociedade sadia. Família em crise,
sociedade em crise».
A rotundidade dessa afirmação é, sem
dúvida, discutível. Mas é inegável que encerra um grande núcleo de verdade.
Sobre a importância social da
família há volumes alentados, análises e estudos muito ponderáveis. Eu
desejaria agora, concretamente, frisar apenas uma das razões que, a meu ver,
evidenciam o nexo de causalidade existente entre família sadia e sociedade sadia.
Refiro-me ao fato de que, na
sociedade, não há nenhum âmbito de crescimento humano e moral, nenhum ambiente
educativo, nenhum “coletivo” tão propício e eficaz para o cultivo das virtudes
como a família bem estruturada. E isso parece-me de suma importância, levando
em consideração que, no mundo atual, cada vez aparece mais evidente que a
sociedade precisa, como de um oxigênio vital, das virtudes, de virtudes mesmo:
aprendidas, arraigadas, exercitadas e desenvolvidas até a maturidade.
Decadência social e ignorância ou desprezo pelas virtudes são a mesma coisa.
A não ser que hoje ainda se
considerem vigentes as afirmações feitas pelo poeta Paul Valéry, num famoso
discurso à Academia Francesa: «Virtude, senhores, a palavra “virtude”, já
morreu ou, pelo menos, está em vias de extinção [...]. Receio que não exista
jornal algum que a imprima ou se atreva a imprimi-la com outro sentido que não
seja o do ridículo. Chegou-se a tal extremo, que as palavras “virtude” e
“virtuoso” só podem ser encontradas no catecismo, na farsa, na Academia e na
opereta».
Seria de desejar que atitudes desse
tipo tivessem ficado enterradas no passado. Quando Valéry falava, virtude
sugeria limite, enquadramento, barreira obsoleta, num ambiente ébrio do vinho
novo da liberdade. A centralidade da virtude na formação do ser humano havia
cedido o espaço à liberdade sem limites, numa eufórica erupção de
individualismo egocêntrico (que paradoxalmente, na primeira metade do século
XX, descambou nas duas maiores tiranias da história). A sociedade atual, com
suas mazelas, com os preocupantes desvios de uma parte não pequena da juventude
(basta pensar nas drogas) é de molde a reacender uma autêntica “saudade das
virtudes”. Mas, pergunto-me, será isso possível ao mesmo tempo em que se exalta
como nunca a “liberdade ilimitada” como único valor moral, ao passo que se
desprestigia a família?
Penso que, nos nossos dias, muitas
vezes pode ser bom mergulhar um pouco na sabedoria dos antigos. Remontemos a
2.500 anos atrás e ouçamos Confúcio dizer: «Para governar deliberadamente um
reino é necessário dedicar-se primeiramente a estabelecer a família e o
ordenamento que lhe convém … Uma família que responda às exigências humanas e
pratique o amor bastará para infundir no reino estas mesmas virtudes»
(Confúcio: Studio
integrale,IX.3. Milão 1960).
Muito nos pode dizer também a
sabedoria dos gregos. Qualquer estudioso da antiguidade clássica sabe que,
entre os poetas e filósofos gregos – e, posteriormente, entre seus discípulos
latinos – a grandeza do ser humano estava indissociavelmente vinculada à
“aretê”, conceito de rico conteúdo cuja tradução mais aproximada, na linguagem
moderna, é precisamente a de “virtude”. O homem vulgar – recorda Werner Jaeger
na sua famosa “Paideia”– não tem “aretê”. E, nas pegadas de Sócrates, Platão
reiterará que a virtude, a “aretê”, é a que torna a alma bela, nobre e bem
formada, a que abrange e eleva o “humano” em sua totalidade … e irradia depois
como glória na vida da comunidade.
Como é sabido, o conceito clássico
de virtude, cinzelado primorosamente pela sabedoria grega, pode resumir-se
dizendo que é a elevação do ser na pessoa humana, a potencialização do “ser”
humano; ou, com linguagem mais atual, a realização das potencialidades humanas
no campo dos valores, a elevação da “qualidade humana”.
Pois bem, perante isso, parece
preciso perguntar-nos: Onde é que a nossa juventude aprende a “aretê”, a
virtude, que deve ser, acima de tudo, um valor reconhecido e amado pela
criança, o adolescente e o jovem, uma convicção enraizada, uma prática
exercitada com empenho, da qual depende o bem da pessoa e da sociedade? Será
que hoje se pode dizer que a virtude se aprende na escola, em qualquer dos seus
níveis e graus? É evidente que não. E em casa…?
A família, sim, a família já foi e
deveria ser agora o caldo de cultura mais propício para a descoberta, a
valorização, o aprendizado e a prática das virtudes. Mas, em que pé está a
família entre nós? Será que há algum empenho dos poderes do Estado em
fortalecê-la como estrutura vital e moral indispensável para a construção do
bem da sociedade. Creio que não está longe da verdade afirmar que,
aparentemente – a julgar pela evolução do direito de família e dos projetos de
lei em trâmite –, nota-se mais um empenho, por parte das cúpulas do poder, em
desestruturar a família e em desferir-lhe golpes de morte.
Estamos numa encruzilhada, e, além
de honesto, é necessário não esconder a cabeça debaixo da asa. Não duvidemos. A
futura sociedade brasileira encaminha-se para uma dessas duas possibilidades,
apontadas pelo jurista Pedro J. Viladrich: ou ser uma “constelação de
famílias”, dessas células primárias, vitais, naturais, sadias, que constituem o
bom tecido social; ou ser um “aglomerado de indivíduos”, preso cada um deles ao
interesse particular e ligado aos demais pelo que Gustave Thibon chamava um
“egoísmo compartilhado”.
Na verdade, é perfeitamente
compatível, na prática, ficar apregoando ideais comunitários e metas sociais –
de resto legítimas – e, simultaneamente, viver obcecados pela exaltação
idolátrica do “indivíduo” com seu acúmulo de “direitos intocáveis”, como hidras
que a cada dia criam uma nova cabeça. A maioria vive aos pés de um ídolo
nitidamente egoísta, ao qual se sacrifica, como nos ritos pagãos, a família, os
filhos, a razão, a moral, a ética, o respeito… e a virtude…
Por isso, pergunto-me se não terá
chegado já o momento em que os responsáveis pelos destinos do Brasil, em vez de
se dedicarem a lançar lenha na fogueira onde se incineram os valores
familiares, voltem a sua atenção para a família, conscientes de que está – em
boa parte por culpa deles mesmos – frágil e doente. Eu não duvido de que é na
família, na autêntica família, mais do que em qualquer outro quadro de
convivência, o “lugar” onde podem ser cultivados os valores, as virtudes e as
sábias “tradições”, que constituem o melhor embasamento da educação cidadã.
Quando a família for valorizada e
defendida como um ideal, quando for uma meta prioritária do poder; quando for
protegida e defendida como verdadeira “célula-base” da sociedade, então
poderemos confiar em que as nossas crianças e adolescentes consigam aprender,
como quem respira, o que significa amar e ser amado, conviver, compartilhar,
respeitar, abraçar o desprendimento e conquistar o autodomínio e a capacidade
de doação; e, assim, tornarem-se justos, amantes da verdade e da palavra,
responsáveis pelos demais… Que consigam aprender, em suma, as virtudes que
capacitam as pessoas para serem construtoras de uma sociedade justa e
“respirável”.
Padre Francisco Faus