Dor que faz bem e dor que faz mal. Há um fato indiscutível, e é que o sofrimento é nosso
companheiro ao longo de todo o caminho da vida. E há um segundo fato,
igualmente incontestável: conforme as pessoas - conforme a qualidade da alma
das pessoas - o sofrimento esmaga ou faz crescer, destrói ou amadurece.
Essa ambivalência da dor - que pode edificar ou arrasar -
indica às claras que o problema, para qualquer ser humano, não reside no
sofrimento que Deus envia ou permite que apareça na nossa vida, mas na atitude
com que aceitamos ou rejeitamos essa cruz, que Deus nos propõe abraçar. Como
sucedeu junto de Cristo no Calvário, a cruz rejeitada afundou o mau ladrão, e a
cruz aceitada com humildade, com fé e com amor, salvou o bom.
Mas, ao lado dessas cruzes enviadas ou permitidas por Deus
há outras que nem Deus quer nem nós queremos, mas aparecem. São as “falsas
cruzes”, que nada trazem de bom. Em que consistem?
Trata-se das “cruzes” que nós mesmos “fabricamos”,
“inventamos”, e que nunca deveriam ter existido. São as que aparecem só como
conseqüência da nossa mesquinhez e dos nossos defeitos. A pessoa egoísta,
ciumenta, invejosa, teimosa…, sofre muito e faz sofrer os outros. Mas esses
sofrimentos não são “cruzes”, no sentido cristão da palavra. São apenas a
destilação amarga do nosso egoísmo. Com certeza não são a vontade de Deus; pelo
contrário, trata-se de pecados mais ou menos graves, que evidentemente Deus não
quer, mas nós colocamos como pedras no caminho da vida.
Se fôssemos fazer as contas, veríamos que a maioria desses
sofrimentos “fabricados” indevidamente por nós brotam de uma dupla fonte: a
fonte do amor-próprio e a fonte do amor pequeno.
O amor-próprio é uma fonte de péssimas cruzes. Como o
orgulho nos faz sofrer! Que feridas infeccionadas não provoca! Basta uma lufada
de ar - uma pequena desconsideração ou indelicadeza -, e o amor-próprio
sente-se atingido como por um punhal. Uma pessoa orgulhosa é incapaz de tolerar
sem ficar magoada - sem se meter num calvário de sofrimentos íntimos - a menor
humilhação, mesmo a causada involuntariamente. Fica alterada, abatida; grava a
mágoa na memória e a vai remoendo lá dentro; cultiva-a na imaginação, aquece-a
ao fogo da autocompaixão, vai engrossando-a à força de lhe dar importância, e
termina fazendo dela uma tortura insuportável.
Bastava que fosse um pouco mais humilde, que soubesse
relevar minúcias, que se esforçasse um pouco por compreender, por desculpar,
por oferecer a Deus as pequenas contrariedades, e não teria nem um miligrama
dessa cruz ruim, que não é a cruz de Cristo.
Se a pessoa orgulhosa sofre com tormentos fabricados pelo
orgulho, que dizer da invejosa? Sempre comparando-se com os outros, sente
subirem-lhe ao coração ondas de melancolia, depressões enciumadas, revoltas
contra a sorte e até protestos íntimos contra a Providência de Deus. Essa
pessoa invejosa, que chora frustrações, foi ela própria a criadora da sua falsa
“cruz”. Se tivesse um coração mais generoso, vislumbraria, feliz e agradecida -
na mesma situação em que só vê infortúnios e injustiças da vida -, dez mil
bondades de Deus e motivos de ação de graças, um panorama de miúdas e saborosas
alegrias, que em vez de lágrimas ou revolta lhe poriam canções dentro da alma.
Vejamos agora a segunda fonte de cruzes doentias: a do amor
pequeno. Já de início, poderíamos dizer que existe um sinal infalível de que o
nosso amor é pequeno: o mau humor. Para quem ama pouco, toda a doação, toda a
paciência, toda a compreensão solicitada pelo próximo é excessiva e aborrecida,
qualquer sacrifício causa revolta ou malestar. O amor grande pratica
generosidades grandes e nem se apercebe do sacrifício que faz. Como dizia Santo
Agostinho: “Quando se ama, ou não se experimenta trabalho, ou o próprio
trabalho é amado”.
Pelo contrário, o amor pequeno transforma uma palha numa
“cruz” insuportável. Então, um sacrifício que caberia “dentro de um sorriso,
esboçado por amor”, não cabe na vida e explode em forma de sofrimento irritado,
com contínuos resmungos, queixas constantes e incessantes protestos. O mau
humor é a sombra do amor pequeno, o sinal que o dá a conhecer.
Se olharmos de perto o que há por trás desse mau humor,
veremos que, em noventa por cento dos casos, é simplesmente a pura e simples realidade
da vida, com as suas incidências, lutas, dificuldades e esforços normais. Por
outras palavras, o que há na raiz do mau humor é apenas a falta de aceitação da
realidade, e da vontade de Deus no dia-a-dia.
É triste lamentar, como se fossem coisa do outro mundo,
dificuldades que são normais. Não é nenhuma contrariedade inesperada o fato de
que os outros tenham asperezas de caráter, de que o cumprimento do dever canse,
de que alcançar metas profissionais custe muito, de que conseguir melhorar os
nossos próprios defeitos ou os defeitos dos que nos cercam - especialmente os
da mulher, do marido, dos filhos - seja algo lento e demorado. No entanto, é
muito comum que, ao constatá-lo, nos sintamos indispostos, nos deixemos levar
pelo aborrecimento, pela impaciência, pelo protesto, e percamos o bom humor.
Reações de todo desproporcionadas e ridículas, pois lá onde nós imaginamos
grandes “cruzes” está apenas a “vida”, a vida que, com um pouco mais de amor e
bom humor, ficaria pontilhada de alegrias e coroada de ações de graças.
Cristo pede-nos que tomemos com amor a cruz de cada dia (Lc
9, 23), é certo, mas - lembrando o que dizia João Paulo I - essa cruz deveria
ser carregada com o “sorriso cotidiano” e não fazendo dela a “tragédia
cotidiana”. No entanto, muitos conseguem mudar o sorriso em tragédia.
Bastam-lhes para tanto duas coisas: em primeiro lugar, amar pouco, como já
víamos. Em segundo lugar, viver mergulhados num mundo de imaginações escapistas
e sonhos irreais.
Muitos são os que reclamam do real - que é a vida, sempre
rica em possibilidades de amar, de crescer por dentro, de fazer o bem - e
passam a instalar-se, esterilmente, no mundo irreal das hipóteses: se eu
tivesse essas outras condições pessoais, essa sorte, essa oportunidade
profissional…; se a minha mulher fosse mais bonita, pacífica e econômica…; se o
meu país tivesse uma economia mais confiável… E, assim, enquanto vivem no mundo
do “tomara que”, atolam-se no que São Josemaria Escrivá chamava a “mística do
oxalá”. Desse modo, estragam a realidade, que é a única que existe e que a cada
instante nos oferece ocasiões de amar e de servir e, como conseqüência, de
sermos felizes.
Quem reclama sem razão da cruz cotidiana perde a cruz de
Deus e encontra a “cruz” do diabo. São cheias de sabedoria aquelas palavras da
Imitação de Cristo que dizem: “Se levas com gosto a cruz, ela te levará. Se a
levas a contragosto, acabas por torná-la mais pesada para ti e a ti mesmo te
sobrecarregas. Se rejeitas uma cruz, sem dúvida encontrarás outra, e
possivelmente mais pesada”.
Penso que essas reflexões podem ajudar-nos a distinguir, na
nossa vida, entre as “verdadeiras” e as “falsas” cruzes. Peçamos a Deus que não
nos permita atolar nas cruzes falsas, para que possamos amar as verdadeiras,
que nos elevam até Deus.
Padre Francisco Faus