A Patre ad Patrem: a iniciativa de Deus
A contemplação da glória do Senhor Jesus no ícone da
Transfiguração revela às pessoas consagradas, antes de mais, o Pai, criador e
dador de todo o bem, que atrai a Si (cf. Jo 6,44) uma criatura sua, por um amor
de predilecção e em ordem a uma missão especial. « Este é o meu Filho muito
amado: escutai-O! » (Mt 17,5). Correspondendo a este apelo acompanhado por uma
atracção interior, a pessoa chamada entrega-se ao amor de Deus, que a quer
exclusivamente ao seu serviço, e consagra-se totalmente a Ele e ao seu desígnio
de salvação (cf. 1 Cor 7,32-34).
Está aqui o sentido da vocação à vida consagrada: uma
iniciativa total do Pai (cf. Jo 15,16), que requer daqueles que escolhe uma
resposta de dedicação plena e exclusiva . A experiência deste amor gratuito
de Deus é tão íntima e forte que a pessoa sente que deve responder com a
dedicação incondicional da sua vida, consagrando tudo, presente e futuro, nas
suas mãos. Por isso mesmo, como ensina S. Tomás, a identidade da pessoa
consagrada pode-se compreender a partir da totalidade da sua oferta, comparável
a um autêntico holocausto .
Per Filium: seguindo os passos de Cristo
O Filho, caminho que conduz ao Pai (cf. Jo 14,6), chama
todos aqueles que o Pai Lhe deu (cf. Jo 17,9) a um seguimento que dá orientação
à sua existência. A alguns porém — concretamente às pessoas de vida consagrada
—, Cristo pede uma adesão total, que implica o abandono de tudo (cf. Mt 19,27)
para viver na intimidade com Ele e segui-Lo para onde quer que vá (cf. Ap
14,4).
No olhar de Jesus (cf. Mc 10,21), « imagem do Deus invisível
» (Col 1,15), resplendor da glória do Pai (cf. Heb 1,3), constata-se a
profundidade de um amor eterno e infinito que atinge as raízes do ser . A
pessoa que se deixa seduzir, não pode deixar de abandonar tudo e segui-Lo (cf.
Mc 1,16-20; 2,14; 10,21.28). A semelhança de Paulo, considera tudo o resto como
« perda, pela excelência do conhecimento de Cristo Jesus », não hesitando em
reputar tudo o mais como « lixo, a fim de ganhar Cristo » (cf. Fil 3,8). A sua
aspiração é identificar-se com Ele, assumindo os seus sentimentos e forma de
vida. O deixar tudo e seguir o Senhor (cf. Lc 18,28) constitui um programa
válido para todas as pessoas chamadas e para todos os tempos.
Os conselhos evangélicos, pelos quais Cristo convida alguns
a partilharem a sua experiência de pessoa virgem, pobre e obediente, requerem e
manifestam, em quem acolhe o convite, o desejo explícito de conformação total
com Ele. Vivendo « na obediência, sem nada de seu e na castidade », os
consagrados confessam que Jesus é o Modelo no qual toda a virtude alcança a
perfeição. Na verdade, a sua forma de vida casta, pobre e obediente
apresenta-se como a maneira mais radical de viver o Evangelho sobre esta terra,
um modo — pode-se dizer — divino, porque abraçado por Ele, Homem-Deus, como
expressão da sua relação de Filho Unigénito com o Pai e com o Espírito Santo.
Este é o motivo por que, na tradição cristã, sempre se falou da objectiva
excelência da vida consagrada.
Inegável é, ainda, que a prática dos conselhos constitui
também uma forma particularmente íntima e fecunda de tomar parte na missão de
Cristo seguindo o exemplo de Maria de Nazaré, primeira discípula, que aceitou
colocar-se ao serviço do desígnio divino com o dom total de si mesma. Toda a
missão inicia com a mesma atitude expressa por Maria, na Anunciação: « Eis a
escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra » (Lc 1,38).
In Spiritu: consagrados pelo Espírito Santo
« Uma nuvem luminosa os cobriu com a sua sombra » (Mt
17,5). Uma significativa interpretação espiritual da Transfiguração vê nesta
nuvem a imagem do Espírito Santo.
Como toda a existência cristã, também a vocação à vida
consagrada está intimamente relacionada com a obra do Espírito Santo. É Ele que,
pelos milénios fora, sempre induz novas pessoas a sentirem atração por uma
opção tão comprometedora. Sob a sua ação, elas revivem, de certo modo, a
experiência do profeta Jeremias: « Vós me seduzistes, Senhor, e eu deixei-me
seduzir » (20,7). É o Espírito que suscita o desejo de uma resposta cabal; é
Ele que guia o crescimento desse anseio, fazendo amadurecer a resposta positiva
e sustentando, depois, a sua fiel realização; é Ele que forma e plasma o
espírito dos que são chamados, configurando-os a Cristo casto, pobre e
obediente, e impelindo-os a assumirem a sua missão. Deixando-se guiar pelo
Espírito num caminho ininterrupto de purificação, tornam-se, dia após dia,
pessoas cristiformes, prolongamento na história de uma especial presença do
Senhor ressuscitado.
Com profunda intuição, os Padres da Igreja qualificaram este
caminho espiritual como filocalia, ou seja, amor pela beleza divina, que é
irradiação da bondade de Deus. A pessoa que é progressivamente conduzida pelo
poder do Espírito Santo até à plena configuração com Cristo, reflete em si
mesma um raio da luz inacessível, e na sua peregrinação terrena caminha até à
Fonte inexaurível da luz. Deste modo, a vida consagrada torna-se uma expressão
particularmente profunda da Igreja Esposa que, movida pelo Espírito a
reproduzir em si mesma os traços do Esposo, aparece na presença d'Ele «
gloriosa sem mancha nem ruga, nem qualquer coisa semelhante, mas santa e
imaculada » (Ef 5,27).
E o Espírito, longe de afastar da história dos homens as
pessoas que o Pai chamou, coloca-as ao serviço dos irmãos, segundo as
modalidades próprias do seu estado de vida, e encaminha-as para a realização de
tarefas específicas, de acordo com as necessidades da Igreja e do mundo,
através dos carismas próprios dos vários Institutos. Daí a aparição de
múltiplas formas de vida consagrada, através das quais a Igreja é « embelezada
com a variedade dos dons dos seus filhos, (...) como esposa adornada para o seu
esposo (cf. Ap 21,2) » , e fica enriquecida de todos os meios para cumprir
a sua missão no mundo.
Os conselhos evangélicos, dom da Trindade
Assim os conselhos evangélicos são, primariamente, um
dom da Santíssima Trindade. A vida consagrada é anúncio daquilo que o Pai, pelo
Filho no Espírito, realiza com o seu amor, a sua bondade, a sua beleza. De
facto, « o estado religioso patenteia (...) a elevação do Reino de Deus sobre
tudo o que é terreno e as suas relações transcendentes; e revela aos homens a
grandeza do poder de Cristo Rei e a potência infinita com que o Espírito Santo
maravilhosamente atua na Igreja » .
A primeira tarefa da vida consagrada é tornar visíveis as
maravilhas que Deus realiza na frágil humanidade das pessoas chamadas. Mais do
que com as palavras, elas testemunham essas maravilhas com a linguagem
eloquente de uma existência transfigurada, capaz de suscitar a admiração do
mundo. À admiração dos homens respondem com o anúncio dos prodígios da graça
que o Senhor realiza naqueles que ama. Na medida em que a pessoa consagrada se
deixa conduzir pelo Espírito até aos cumes da perfeição, pode exclamar: «
Contemplo a beleza da vossa graça, vejo seu brilho, irradio sua luz; fico
cativado pelo seu inefável esplendor; acabo arrebatado longe de mim, sempre que
penso ao meu próprio ser; vejo como era e no que me tornei. Ó maravilha! Presto
toda a minha atenção, fico cheio de respeito por mim mesmo, de reverência e de
temor como se estivesse diante de Vós mesmo; não sei o que fazer, porque a
timidez se apoderou de mim; não sei onde sentar-me, donde me aproximar, onde
repousar estes membros que Vos pertencem; em que iniciativa, em que obra
empregá-las, estas encantadoras maravilhas divinas ». Deste modo, a vida
consagrada torna-se um dos rastos concretos que a Trindade deixa na história,
para que os homens possam sentir o encanto e a saudade da beleza divina.
Nos conselhos, o reflexo da vida trinitária
A relação dos conselhos evangélicos com a Trindade santa
e santificadora revela o sentido mais profundo deles. Na verdade, são expressão
do amor que o Filho nutre pelo Pai na unidade do Espírito Santo. Praticando-os,
a pessoa consagrada vive, com particular intensidade, o carácter trinitário e
cristológico que caracteriza toda a vida cristã.
A castidade dos celibatários e das virgens, enquanto
manifestação da entrega a Deus com um coração indiviso (cf. 1 Cor 7,32-34),
constitui um reflexo do amor infinito que une as três Pessoas divinas na
profundidade misteriosa da vida trinitária; amor testemunhado pelo Verbo
encarnado até ao dom da própria vida; amor « derramado em nossos corações pelo
Espírito Santo » (Rm 5,5), que incita a uma resposta de amor total a Deus e aos
irmãos.
A pobreza confessa que Deus é a única verdadeira riqueza do
homem. Vivida segundo o exemplo de Cristo que, « sendo rico, Se fez pobre » ( 2
Cor 8,9), torna-se expressão do dom total de Si que as três Pessoas divinas
reciprocamente se fazem. É dom que transborda para a criação e se manifesta
plenamente na Encarnação do Verbo e na sua morte redentora.
A obediência, praticada à imitação de Cristo cujo alimento
era fazer a vontade do Pai (cf. Jo 4,34), manifesta a graça libertadora de uma
dependência filial e não servil, rica de sentido de responsabilidade e animada
pela confiança recíproca, que é reflexo, na história, da amorosa
correspondência das três Pessoas divinas.
Assim, a vida consagrada é chamada a aprofundar
continuamente o dom dos conselhos evangélicos com um amor cada vez mais sincero
e forte na sua dimensão trinitária: amor a Cristo, que chama à sua intimidade;
ao Espírito Santo, que predispõe o espírito para acolher as suas inspirações;
ao Pai, origem primeira e fim supremo da vida consagrada. Esta torna-se, assim,
confissão e sinal da Trindade, cujo mistério é indicado à Igreja como modelo e
fonte de toda a forma de vida cristã.
Também a vida fraterna, em virtude da qual as pessoas
consagradas se esforçam por viver em Cristo com « um só coração e uma só alma »
(At 4,32), se apresenta como uma eloquente confissão trinitária. Confessa o
Pai, que quer fazer de todos os homens uma só família; confessa o Filho
encarnado, que congrega os redimidos na unidade, apontando o caminho com o seu
exemplo, a sua oração, as suas palavras e, sobretudo, com a sua morte, fonte de
reconciliação para os homens divididos e dispersos; confessa o Espírito Santo,
como princípio de unidade na Igreja, onde não cessa de suscitar famílias
espirituais e comunidades fraternas.
Consagrados, como Cristo, para o Reino de Deus
Sob o impulso do Espírito Santo, a vida consagrada «
imita mais de perto, e perpetuamente representa na Igreja » a forma de
vida que Jesus, supremo consagrado e missionário do Pai para o seu Reino,
abraçou e propôs aos discípulos que O seguiam (cf. Mt 4,18-22; Mc 1,16-20; Lc
5,10-11; Jo 15,16). À luz da consagração de Jesus, é possível descobrir na
iniciativa do Pai, fonte de toda a santidade, a nascente originária da vida
consagrada. Na verdade, Jesus é aquele que « Deus ungiu com o Espírito Santo e
com poder » (At 10,38), « aquele que o Pai consagrou e enviou ao mundo » (Jo
10,36). Recebendo a consagração do Pai, o Filho consagra-Se por sua vez ao Pai
pela humanidade (cf. Jo 17,19): a sua vida de virgindade, obediência e pobreza
exprime a adesão filial e plena ao desígnio do Pai (cf. Jo 10,30; 14,11). A sua
oblação perfeita confere um sentido de consagração a todos os acontecimentos da
sua existência terrena.
Jesus é o obediente por excelência, descido do céu não para
fazer a sua vontade, mas a d'Aquele que O enviou (cf. Jo 6,38; Heb 10,5.7).
Entrega o seu modo de ser e de agir nas mãos do Pai (cf. Lc 2,49). Por
obediência filial, assume a forma de servo: « Despojou-Se a Si mesmo tomando a
condição de servo (...), feito obediente até à morte e morte de cruz » (Fil
2,7-8). É também nesta atitude de docilidade ao Pai que Cristo, embora
aprovando e defendendo a dignidade e a santidade da vida matrimonial, assume a
forma de vida virginal, e revela assim o valor sublime e a misteriosa
fecundidade espiritual da virgindade . A sua plena adesão ao desígnio do Pai
manifesta-se ainda no desapego dos bens terrenos: « Sendo rico, fez-Se pobre
por vós, a fim de vos enriquecer pela sua pobreza » (2 Cor 8,9). A profundidade
da sua pobreza revela-se na perfeita oblação de tudo o que é seu ao Pai.
Verdadeiramente a vida consagrada constitui memória viva da
forma de existir e atuar de Jesus, como Verbo encarnado face ao Pai e aos
irmãos. Aquela é tradição vivente da vida e da mensagem do Salvador.
EXORTAÇÃO APOSTÓLICA - PÓS-SINODAL - VITA CONSECRATA - JOÃO PAULO II