Recentemente,
um grupo de visitantes ficou impressionado de ver como recebíamos do Pai roupas
usadas, alimentos, casa, oportunidades, amigos, benfeitores, vocações, farta
colheita no apostolado e também a tranqüilidade diante dos desafios, tentações
e provas de fé do dia a dia. Ficaram impressionados, enfim, como agia em nosso
meio a Divina Providência. Nos seus rostos educados, podia ler seu conflito
interior cujo ponteiro ora apontava para a admiração: “Como têm fé!”, ora para
a reprovação: “Mas, são uns irresponsáveis!”
Um deles
resumiu o pensamento do grupo diante do fato de que havíamos abraçado com
alegria e tranqüilidade o desafio de mais um
Halleluya, encontro que reúne, em cada uma de suas cinco noites, uma média
de 30 mil pessoas, em sua imensa maioria jovens, com custo que chega a quase
cem mil reais. E olha que este ano o patrocínio havia alcançado cerca de 60% do
custo, um recorde com relação aos anos anteriores. “E o restante?” perguntava
meu interlocutor. Ao ouvir de mim, sorridente, que o resto Deus providenciaria
através da coleta de cada noite e da generosidade dos irmãos, resumiu, meneando
a cabeça: “Sei pazzi!”, que, em bom português significa: “Vocês são uns
loucos!”
Tem razão.
Não há, mesmo, lógica na fé, especialmente quando a fé se refere à providência
de Deus e quando estamos tão acostumados a cuidar excessivamente de nós mesmos,
dos nossos filhos, das nossas coisas, do nosso futuro, da nossa vida, das
nossas necessidades. Não há lógica que explique a este grupo de irmãos como
sobrevivemos sem termos o necessário para viver, como comemos sem ter dinheiro
para comer, como a providência amorosa do Pai leva irmãos a emprestarem por
anos a fio e sem nada cobrar um excelente apartamento para morarmos.
Ontem a
frase “Sei pazzi!” fez-me sorrir, apesar do cansaço, por inúmeras vezes. Fui a
uma oculista que me havia prometido conseguir as caras lentes dos óculos graças
aos quais escrevo o que você lê agora. Tinha a garantia das lentes, mas não
tinha a armação adequada, nem tempo hábil para fazer os exames que ela
porventura pedisse. Não imaginava, também, como iria arranjar tempo para
procurar as lentes que ela conseguiria como cortesia do fornecedor. No entanto,
como havia tirado dois dias de repouso do trucidamento de 15 dias de pregação
no sudeste e mais quinze dias com visitantes aqui, tudo com a deliciosa mas
cansativa “cobertura de chantili” do Halleluya,
resolvi ir à oculista assim mesmo. Começou a odisséia que, como centenas e
centenas de outras, faria inveja a qualquer pardal que não vale mais que um
ace.
Chegando à
clínica, entrei pela porta errada e dei “de cara” com um irmão, dono de uma
ótica que, ao me perguntar o que eu fazia ali e receber a lacônica resposta de
que iria ao oculista, retrucou prontamente e com entusiasmo desproporcional às
minhas poucas palavras: “Pois faço questão de lhe dar a armação. Passe na loja.
Vou avisar que você vai lá hoje mesmo!”
Agradeci,
sem saber como seria possível encontrar tempo e gasolina para ir no mesmo dia
até a loja em um carro que me tinha sido oferecido para o tempo da permanência
do grupo – também ação da providência divina. Ao entrar no consultório, a
médica me recebe exclamando: “Estava justamente falando com o representante das
tuas lentes. Ele está vindo aqui trazer o teu cheque cortesia. É a melhor
lente, a mais moderna. Faço questão de ir até a ótica com você.”
Exame
clínico feito, fez-se necessário um exame de campo visual, para o qual só
haveria vaga na semana seguinte. Logo, porém, um telefonema me pegou ainda no
consultório dizendo que um paciente marcado para o exame havia desistido e se
eu estaria pronta para fazer o exame naquele momento. Novamente morreram de
inveja os pardais. O tempo do exame foi exatamente o necessário para saírem os
últimos clientes e chegar o cheque cortesia, tudo isso em uma sexta-feira à
tarde, quando todos pensam mais em ir para casa do que em trabalhar.
De médica a
tiracolo, fomos para a ótica, eu rezando para a gasolina ser suficiente e para
o estacionamento não custar mais que os dois reais que tinha na carteira. Ao
chegarmos na ótica, o filho do dono já estava avisado e já havia avisado à
gerente, que, apesar de serem já quase dezoito horas, me esperava com o maior
dos sorrisos, como se eu fosse milionária. Desce o filho do dono e me atende
como uma princesa. O pai não estava lá, porém. No entanto providencialmente, o
filho recebe autorização da mãe, mesmo enferma e convalescente no Rio de
Janeiro, que, sabendo da proximidade do meu aniversário, diz que é um presente.
Gerente, médica e filho do dono escolhem para mim uma belíssima armação que eu
jamais teria como comprar. De tão bem tratada, de tão apressada a providência,
eu me sentia zonza, sem saber o que fazer, ora de pé, ora sentada, no meio da
loja, enquanto todos se esmeravam em escolher o melhor, o mais moderno, o mais
adaptado ao meu rosto, como seu eu fosse uma princesa, e não um pequeno pardal.
Em uma
tarde, consulta, exame, lente, armação, brinde, cafezinho, amizade, gasolina,
carro, estacionamento, me soterraram em amor de Deus e dos irmãos, tal qual uma
criança é soterrada por seus presentes de natal. Também a divina providência me
havia feito chegar, na noite anterior, dolorosíssima notícia. Assim, soterrada
por tantos mimos, pude imaginar a inveja dos pardais, que recebem o necessário
para a sua sobrevivência, enquanto eu, filha e, conforme diz o próprio Jesus,
valendo muito mais que eles, embora, em minha fraqueza seja muito menor diante
de sua inocência e confiança, recebia o necessário para enxergar bem e o
necessário para viver feliz: o amor de Deus e dos irmãos, o consolo que,
através deles, Deus me dava em meio à minha dor e a “certeza seguríssima” de
que o Pai, que me dava tudo aquilo, também cuidaria, mais uma vez, de resolver
o que me fazia, naquele momento, sofrer.
Em outro
momento, contarei como, em São Paulo, com uma inflamação dolorosa entre as
costelas, a divina providência me levou aos horrores do SUS, à humilhação de
ter de tirar a blusa em meio a várias pessoas e ser “examinada” sem mesmo ser
tocada ou sentar-me ou deitar-me, de como esperei, com dor, frio e fome, em
meio a dezenas de outros doentes como eu para ser atendida, de como tive de
continuar a pregar por vários dias apesar de não conseguir dormir nem respirar
fundo devido à dor, de como dependi de alguém que me vestisse, calçasse,
penteasse e como tinha forças para chegar na pregação com a melhor cara do
mundo. Também aí, fui tratada melhor que os pardais. Tive, aí, o privilégio
incomparável de partilhar um pouquinho da dor de Jesus na cruz dos pobres.
Também aí conheci o zelo, o cuidado a amizade de quem me levou e da divina
providência que me sorriu e pediu a unidade no sofrimento. Também aí vali mais
que os pardais que não têm liberdade para abraçar uma pequenina cruz que seja,
nem amor para alegrar-se com ela.
Como você
vê, na alegria ou na tristeza, é sempre a divina providência a agir. Quanto aos
pardais, valem menos do que eu e você, que somos filhos. No entanto, não nos
invejam. Como nós, recebem do Pai tudo o que precisam. Diferente de nós, porém,
nunca se preocupam. Quanto a este “pequeno detalhe”, a quem caberá maior razão
de ter inveja?
Emmir Nogueira –
Co-fundadora da Comunidade Shalom