Eram os primeiros anos de sacerdócio, em minha primeira Paróquia, numa das mais gratificantes experiências do exercício do ministério, a atenção aos doentes, regularmente visitados, para o Sacramento da Penitência, a Unção dos enfermos e a Sagrada Comunhão, quando recebi uma das lições mais expressivas. Penso nos meus sacerdotes hoje, muitos deles dedicados semanalmente a tais visitas, testemunhas de milagres, quando Deus lhes concede muito mais do que levam aos verdadeiros santuários, que são os leitos dos que se fazem para-raios que, com sua oferta e oração contínua, sustentam silenciosamente a Igreja e os irmãos.
Pois bem, minha mestra espiritual,
naquela ocasião, foi uma cega de nascença, no alto de seus oitenta e nove anos.
Lembro-me de seu rosto curtido, com as marcas da ascendência escrava, da qual
nunca se envergonhou. Recebidos os Sacramentos, diante das pessoas que comigo
se encontravam, enquanto “saía um cafezinho novo”, pontificou diante do padre
novo: “Agradeço a Deus por ser cega! O senhor não acha que a maior parte dos
pecados começa com a vista? Ora, se não enxergo, posso pecar menos!” Fazia
poucos anos em que tinha me debruçado sobre a afirmação do Senhor Jesus: “Se
teu olho te leva à queda, arranca-o e joga fora. É melhor entrares na vida
tendo um olho só do que, com os dois, seres lançado ao fogo do inferno” (Mt
18,9). Precisei de uma pessoa que nunca tinha lido uma letra para entender
melhor a importância de viver sem pecado, coragem para resistir às tentações e
perseverar no bem. É que aquela senhora enxergava mais do que todos, pois via
com o coração. Seu horizonte era muito mais amplo e suas muitas lições
permaneceram em seus familiares e frutificaram na Comunidade em que vivia.
“Cheios de grande admiração, diziam:
“Tudo ele tem feito bem. Faz os surdos ouvirem e os mudos falarem” (Mc 7,37). O
contato de Jesus com as pessoas as deixa sempre marcadas positivamente. Ninguém
passa em vão ao seu lado. Em Jericó (Mc 10,46-52), depois de uma escola de
vida, durante uma viagem, na qual formava seus amigos escolhidos para a missão
de levar a Boa Nova a todos, indica-lhes o modelo do discípulo justamente em
Bartimeu, cego, mendigo sentado à beira do caminho e morador de uma cidade de
má fama! Mais do que os alunos aplicados da escola do caminho, o rejeitado por
todos, sobre o qual muitos teriam perguntado sobre eventuais culpas (Cf. Jo
9,2), é apresentado pelo Evangelho como modelo de discípulo.
Bartimeu é daquelas pessoas que não
deixam escapar uma boa oportunidade (Cf. Raniero Cantalamessa, Gettate le reti,
Anno B, PIEMME, 2004, Pág. 314). Ouviu dizer que Jesus, o nazareno, estava
passando e agiu com prontidão, gritando no meio do povo, mesmo quando a “turma
do deixa disso” quis calar sua boca. Era um mendigo da luz, queria enxergar! Como
tantos homens e mulheres, jovens ou adultos de nosso tempo que pedem a esmola
da luz verdadeira, querem conhecer a verdade, quem sabe às apalpadelas. Faz
pensar nas muitas situações em que nosso tempo quer calar a voz da fé, para que
se torne apenas um fato privado, com a pretensão de que desapareçam todos os
sinais externos das convicções religiosas que sempre geraram cultura e valores.
Bartimeu gritou em voz bem alta a sua fé, para dizer a todos que Jesus é o
Messias prometido. Há gritos entalados, e vi muitos deles nas multidões do
Círio de Nazaré de 2012, que querem chorar e espernear pelos valores do
Evangelho e da dignidade das pessoas humanas. Há gente que quer dar o salto da
fé, para sair do meio da multidão! Jesus pretende, através dos cristãos de
hoje, aproximar-se de cada uma delas, para perguntar “o que queres que eu te
faça?”. Para tanto, faz-se necessário dar um “trato” de atenção e carinho a
todos os que estão afastados ou assim se sentem. Lá na margem dos lagos da
vida, ou quem sabe, lá na correnteza violenta dos rios da existência, ou, quem
sabe, na escuridão das vielas em que se escondem, há pessoas pedindo a esmola
da verdade.
Ressoe de novo a palavra do Senhor:
“Aclamai a Jacó alegremente, cantai hinos à primeira das nações! Soltai a voz!
Cantai! Dizei: Senhor, salva teu povo, o que restava de Israel! Pois vou
trazê-los de volta do país do norte, dos extremos da terra hei de reuni-los.
Entre eles, cego e aleijado, mulher grávida e parturiente. Em grande multidão
voltam para cá. Chegam chorando, suplicantes eu os traslado. Faço-os caminhar
entre torrentes de água, por caminhos planos, onde não tropeçam; eu sou pai
para Israel, Efraim é meu filho querido” (Jr 31,7-9). Norte, traslado, reunião
de multidões, cego e aleijado, mulher grávida e parturiente, torrentes de água,
caminhos onde as pessoas não tropeçam... Qualquer semelhança com o que vivemos
no Círio, não é coincidência! É Providência!
Cabe-nos encontrar as formas
adequadas para dizer “Coragem, levanta-te, Jesus te chama” (Mc 10,49). A cura
das pessoas e das multidões virá pelo encontro com o Senhor que é Deus e homem.
A Igreja, servidora e colaboradora da verdade, renove suas disposições para
anunciar integralmente o Evangelho, no ano da Fé. Este será uma ocasião
propícia a fim de que todos os fiéis compreendam mais profundamente que o
fundamento da fé cristã é o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que
dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo
decisivo. Fundamentada no encontro com Jesus Cristo ressuscitado, a
fé poderá ser redescoberta na sua integridade e em todo o seu esplendor. Também
nos nossos dias a fé é um dom que se deve redescobrir, cultivar e testemunhar
para que o Senhor conceda a cada um de nós vivermos a beleza e a alegria de
sermos cristãos (Cf. Bento XVI, Carta Enc. Deus caritas est, 25 de dezembro de
2005, n. 1 e Homilia na Festa do Batismo do Senhor, 10 de janeiro 2010).
Dom Alberto Taveira Corrêa
Arcebispo Metropolitano de Belém