quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Valor absoluto da pessoa surge com cristianismo, explica teólogo



Reprodução Doutor em Teologia, Lino Rampazzo: a bioética precisa apresentar a importância dos valores“Família, Santuário da Vida”: esse é o tema da 2ª Jornada de Bioética, promovida pela Associação de Médicos Católicos da Diocese de Lorena (SP) e o Grupo de Pesquisa em Ética do Centro Universitário Salesiano.






Qual é a noção de pessoa que a Igreja Católica utiliza? Por quê?

Lino Rampazzo: O conceito de pessoa, aplicado ao homem, com sua consequente dignidade, apareceu só no cristianismo. Para os gregos, de cuja civilização somos herdeiros, o homem aparece apenas como indivíduo representante de uma espécie e a vida terrestre é considerada como uma decadência ou a passagem para a existência pura do espírito.

O valor absoluto do indivíduo é um dado da revelação cristã. Ela, de fato, não está voltada ao gênero humano de modo abstrato, mas é dirigida a todos os homens tomados individualmente, enquanto cada um deles é filho de Deus. Com essa base de fé, aos poucos, criou-se, sempre no ambiente cristão, o termo “pessoa” aplicado ao homem. Santo Agostinho, pela primeira vez, afirmou que “cada homem é uma pessoa”. Antes, o termo “pessoa” tinha sido criado e utilizado para falar, na linguagem especificamente teológica, das pessoas do Pai, do Filho e do Espírito Santo; como também da pessoa do Filho de Deus que se encarnou em Cristo.

A pessoa humana, na visão cristã, é tão importante que, no juízo final, seremos premiados ou condenados conforme nossas atitudes de acolhida ou de rejeição com as pessoas: Estava com fome, com sede, desabrigado, nu, doente, preso... e vocês me acolheram, ou, vocês não me acolheram (cf. Mt 25, 35ss). Trata-se, pois, de uma misteriosa mas real presença do Cristo na pessoa humana, especialmente naquela que se encontra em necessidade.

Em suma, para a fé cristã, professada na Igreja Católica, a “pessoa humana” foi criada “à imagem e semelhança de Deus”. Pecou, foi redimida por Cristo e é chamada à ressurreição gloriosa, no fim da história: por isso merece o maior respeito, em toda a sua vida e em todas as circunstâncias da vida.


Quais são os principais riscos da Ideologia de Gênero no que diz respeito a uma visão autêntica do ser humano?

Lino Rampazzo: Gostaria de colocar esta problemática dentro da crise mais ampla da sexualidade que o mundo ocidental está vivendo. Os valores tradicionais estão sendo profundamente abalados: temos o sexo sem amor, o sexo sem filhos, os filhos sem sexo, as famílias com um único filho que não sabe o que significa “ter um irmão”. Acrescente-se a incerteza quanto ao pai e à mãe. Quem é o “pai” na fecundação heteróloga, onde a mulher recebe o esperma de um doador desconhecido? Quem é a mãe numa gestação “alugada”? A “mãe de aluguel” ou a mulher que doou o óvulo? E, para entrar na questão colocada, temos uma “família” em que a diferenciação sexual não recebe mais aquela consideração que a tradição sempre lhe deu. Chega-se ao ponto em que os heterossexuais querem apenas conviver, sem casamento; e os homossexuais querem casar. Além disso, pretendem adotar um filho. Esse “filho” poderá certamente receber bens materiais e até carinho destes “pais”. Mas será que ele não tem o direito de ser educado por uma figura masculina e por uma figura feminina, com específica função paterrna e materna? No fundo, poderíamos, aqui também, aplicar o famoso ditado que o mesmo Jesus citou: “o homem não vive somente de pão”.

A questão pode ser assim colocada: para uma visão autêntica de ser humano, existe uma função específica do marido, da mulher, do pai, do filho, do irmão, da família. Trata-se de uma extraordinária riqueza de valores que não pode ser perdida. Será que a relação sexual pode ser reduzida apenas a um nível biológico? O amor-doação, expresso de maneira singular na relação sexual, não merece mais consideração? A redução da fecundidade à “atividade de laboratório” é respeitosa da dignidade humana?

No fundo, não é a simples questão da Ideologia de Gênero, mas toda a concepção da sexualidade que está sendo desmontada, ao ponto de considerar “retrógrado” quem fala de amor-doação, amor-fecundo, sexualidade como expressão de amor, especificidade do masculino ou do feminino.

O fato de lembrar esses valores fundamentais não significa afirmar que os homossexuais não tenham direitos. Eles são pessoas que precisam ser respeitadas e acolhidas. Têm direitos, com certeza. Mas a “caridade” não pode “pisar” encima da “verdade” do ser humano, com todas as suas características, inclusive no que diz respeito aos citados valores da família e da sexualidade. Os princípios acima apresentados, naturalmente, precisam ser considerados na sua aplicabilidade aos casos concretos: quantos excelentes casais gostariam de ter um filho e não podem; ou ter mais que um filho, e só podem ter um! Agora, para resolver esses problemas, é preciso procurar soluções que sejam sempre respeitosas da dignidade da pessoa humana.


De que modo o relativismo moral afeta as discussões neste campo?

Lino Rampazzo: Antes de tudo, o que é o “relativismo”? Em uma homilia, o Cardeal Joseph Ratzinger, na condição de Decano do Colégio dos Cardeais, em 18 de abril de 2005, poucos dias antes de ser eleito Papa, apresentou o “relativismo” nestes termos: "deixar-se levar ao sabor de qualquer vento de doutrina, que aparece como a única atitude à altura dos tempos atuais. Vai-se constituindo uma ditadura do relativismo que não reconhece nada como definitivo e que usa como critério último apenas o próprio 'eu' e os seus apetites".

Nessa “aula”, pode-se aprender, pois, uma definição de relativismo: não reconhecer nada como definitivo e usar como critério último apenas o próprio “eu” e os seus apetites. Gostaria de aplicar, neste contexto, uma frase que ouvi com frequência, nos ambientes administrativos, quando da crise econômica de 2008: precisamos transformar a crise em oportunidade. Diante da “crise do relativismo”, diante da ridicularização feita a quem defende os valores da vida, da sexualidade e da família, é preciso criar a oportunidade de fortalecer as próprias convicções e a capacidade de “demonstrá-las” até racionalmente como mais dignas da pessoa humana.

O modelo cristão deve manifestar-se numa vida em toda sua “amplitude” e liberdade, que não experimenta o vínculo do amor como dependência e limitação, mas como abertura à grandeza da vida. Abre-se, pois, o espaço às “minorias criativas”, a grupos de cristãos que podem apresentar este modelo de vida de maneira mais convincente.

Em termos de bioética, qual é o modo mais justo e digno de se enxergar a pessoa humana?

Lino Rampazzo: Antes de tudo, vamos perguntar: o que é a bioética? Como nasceu esta nova ciência? A bioética nasceu do questionamento sobre algumas tristes possibilidades da tecnologia. As novas descobertas tecnológicas mudaram profundamente a “face da terra” e a “face do homem” que vive na terra. Mudaram a maneira de viver e de relacionar-se das pessoas; e mudaram a vida mesma das pessoas.

A tecnologia nos acompanha desde o nascimento até a morte. As novas tecnologias mexem com a vida humana; possibilitam uma maior regulação da natalidade e conseguem, muitas vezes, vencer a esterilidade com técnicas que nem se sonhavam poucas décadas atrás: a inseminação artificial, o “bebê de proveta”, etc. No campo da saúde, as novas tecnologias possibilitam a cura de muitas doenças, a diálise, os transplantes (rins, fígado, coração...). Todo este desenvolvimento tecnológico levantou sérias questões éticas.

A ética se baseia, essencialmente, no respeito da pessoa humana. Essas tecnologias respeitam sempre a pessoa humana? Não existe, por acaso, o risco de reduzir a pessoa a um objeto de manipulação? O problema ético aparece de modo mais agudo porque o “poder” científico-tecnológico atingiu o nível de ruptura. A ruptura se situa no plano da possibilidade “técnica” de destruir a humanidade inteira por meio da arma atômica ou da poluição do ambiente e, por outro lado, também no plano da possibilidade de introduzir a “mutação” genética do homem.

Assim, pode ser formulada hoje a pergunta ética: o que se deve fazer ou o que não se deve fazer para que o homem sobreviva e continue homem? A técnica é um produto do homem: sai da inteligência do homem, mas precisa ser colocada a serviço do homem. Ou, como dizia Paulo VI, “a serviço do homem todo e de todos os homens”. Em outros termos, a ciência sem a sabedoria destrói a humanidade.

A bioética tem como objetivo unir a “ciência” e o “saber tecnológico” com a sabedoria. Para enxergar a pessoa humana de maneira justa e digna, a bioética apresenta seus princípios, a saber: defender sempre a vida humana; respeitar a liberdade e a responsabilidade; e, por motivo de justiça, promover a vida e a saúde de cada um, independentemente das suas condições econômico-sociais.

Para concluir: a bioética precisa apresentar a importância dos valores – a vida, a liberdade, o amor, a justiça, a fraternidade, a família, a ecologia – neste tempo em que não podemos nos deixar sufocar nem pela dimensão “econômica” nem pela dimensão “técnica”.