quinta-feira, 26 de abril de 2012

Espiritualidade: a arte do caminho



A palavra "religião" tem duas etimologias possíveis: em primeiro lugar, a de religare que significa ligar-se, entrar em relação com o que se considera como um absoluto ou um essencial. Essa etimologia é o sentido habitual da palavra "religião" que, posteriormente, encarnar-se-á num certo número de ritos, práticas, em que essa relação toma forma. Existe, igualmente, outra etimologia: religere, que significa reler. Reler um acontecimento com o objetivo de extrair, descobrir sua significação. Nessa ordem de idéias, uma religião representa um esforço empreendido por mulheres e homens para conferirem sentido à sua vida, sua existência.
A palavra "sagrado" vem do verbo latino sacere, literalmente: o que é considerado sagrado está sujeito ao anátema, é excluído. De fato, uma coisa sagrada é uma coisa tabu, ou seja, é algo que está no mundo, mas "não é deste mundo".
É impressionante ver que a palavra sacer, que dará a palavra "sacerdócio", subentende alguém que está à parte, que é colocado à parte. Por detrás do latim encontramos a mesma significação no termo hebraico kadesh.
Assim, declarar um lugar como sagrado é colocá-lo à parte. Ele encontra-se realmente no espaço-tempo, mas como existe nele a marca de outro mundo é nesse caso considerado sagrado.
Qualificar um rito, uma experiência, uma forma de tocar ou olhar alguém como sagrado, é reconhecer-lhe uma dimensão, uma profundidade, uma intimidade que, precisamente, não podem ser apreendidas. Essa intimidade do sagrado que liga sempre aquele que a experimenta em sua própria intimidade deve ser infinitamente respeitada. Sabe-se quão pouco ela o é na nossa sociedade.
Eis a razão pela qual não existe terra santa ou sagrada em si mesma, mas o que torna uma terra sagrada é a nossa maneira de andar nela. Do mesmo modo, não existe corpo sagrado em si mesmo, mas é a qualidade de nossa relação com esse corpo, esse rosto, que introduzirá algo de sagrado. Da mesma forma, um lugar sagrado é um lugar ao qual minha subjetividade está ligada através de um vínculo que me escapa, que não consigo apreender, reificar. Qualquer encontro humano que não se transforme em uma fusão, ou em uma apropriação do outro, mas onde exista lugar para a relação - o que implica a presença de um terceiro termo - é sagrado. O que permite estarmos juntos, falarmos uns com os outros, compreendermo-nos, tocarmo-nos, consolarmo-nos, confirmarmo-nos, não é o "tu" ou o "eu", tampouco o "nós-dois" sozinhos, mas antes um "nós dois" abertos juntos para essa presença que nos une.
A relação intermediada por uma palavra ou por um gesto não se confina em uma dualidade, em um vínculo limitado a duas pessoas com suas subjetividades que se enfrentam, se atraem e se unem de maneira íntima, mas entre as duas existe o Terceiro que as diferencia e, nessa diferenciação, permite-lhes um modo de união mais elevado do que o "um".
Aqui temos toda a simbólica do algarismo "três" no qual se insere o sagrado. Não se trata de regredir ao "um", esse "um" indiferenciado; também não se trata de permanecer no "dois", na dualidade, no dual; mas de passar ao Três que é a unidade diferenciada, a aliança.
Quanto à "espiritualidade", ela é independente da experiência religiosa. Faz parte de toda a humanidade. Constitui a própria essência do se humano. Não é verdade que São João nos diz: "O Logos é a luz que ilumina todo homem que vem a este mundo"? Todos os que procuram a verdade do seu ser encontra essa Luz.
Na tradição grega, "ser espiritual" significa estar desembaraçado  dos elementos mais pesados do composto humano. O "espiritual" é essa dimensão do ser humano a que se dá o nome de "noética", isto é, livre em relação às emoções, pulsões,  paixões.
A tradição semítica introduz o termo Pneuma, o Sopro. São Paulo, por exemplo, estabelece a diferença entre "psíquico" e " pneumático". Todos as pessoas são habitadas pelo Sopro e atravessados pela corrente de uma vida interior. Mas é possível viver ao lado de seu Sopro, do mesmo modo que se pode viver ao lado de si mesmo. É espiritual aquele que entra em seu Sopro, aquele que deixa a Vida encarnar-se plenamente nele. É a razão pela qual, nessa interpretação do espiritual  como "Sopro", o ser espiritual consiste em ser plenamente ele próprio. Ser espiritual é ser "inspirado" ou, mais simplesmente, "respirado"  profundamente.

A espiritualidade é "dar um passo a mais". Dar "um passo a mais" na aceitação da minha fadiga, na aceitação dos meus limites, limites de minha inteligência, de minha incompreensão diante do sofrimento e da dor. É a tradição dos peregrinos de Santiago de Compostela: ultreia, "mais além", dar um passo a mais, fazendo parte ou não de uma religião.
Ser espiritual é simplesmente, na situação onde se está, dar esse "passo a mais". Fazer o caminho espiritual com o outro é ajudá-lo a fazer a mesma coisa, no próprio âmago daquilo que ele é, viver no Sopro, no Espírito, simplesmente.A virada antropológica: "Procurar o mais divino no mais humano". Em vez de acreditar na "grandeza de Deus e na humildade da carne", a nossa fé exige de nós de acreditar na "humildade de Deus e na grandeza da carne humana".

 Pe. Nelito Dornelas