ROGAI
POR NÓS
P. Márcio Fabri dos Anjos CssR
Rogai
por nós é,
na tradição cristã, uma conhecida forma de invocação à Maria e aos santos e
santas. A invocação à Maria se distingue porque Ela é a mãe de Jesus, e recebe
ao longo da História inúmeros títulos e representações desenvolvidas pela
teologia e pelas devoções populares. Neste estudo estamos nos centrando apenas
sobre a invocação à Maria, mas através desse ponto de partida, indiretamente colhemos
elementos para entender também a intercessão.
Procuramos dar um enfoque ético-teológico,
isto é, analítico e avaliativo do ponto de vista cristão católico; e não apenas
verificativo sobre as formas de invocação que se encontram na piedade popular. Com
alguns recortes interdisciplinares, buscamos elementos de análise da invocação.
Tal modo analítico de proceder não visa obviamente destruir a fé e a piedade,
mas exatamente lhe possibilitar melhor qualidade.
- Invocação: experiência da fragilidade e da confiança no poder divino
A relação com Nossa Senhora na
invocação comporta três elementos básicos: fragilidade
– poder – confiança. Estes
elementos têm diferentes representações,
ou seja, diferentes formas de se apresentarem e de as identificarmos em nossa
existência. As fragilidades aparecem como necessidades passageiras, episódicas,
ou também persistentes nas diferentes condições da vida.
As
representações do poder em geral são seletivas e estão relacionadas com as
necessidades. É interessante notar como a piedade popular atribui certa
“especialidade” no poder de ajuda dos santos e das santas. No caso da invocação
a Nossa Senhora se dá uma universalização desse poder que aparece, por exemplo,
no título de “Perpétuo Socorro”. Mas há também especificações em alguns títulos com Consoladora dos aflitos, ou “Desatadora
dos nós”.
Entre
o poder e a necessidade se coloca a confiança. Ela não é passiva, pois além da
iniciativa de pedir inclui a expectativa de alcançar o que se pede; e onde
muitas vezes no pedido já está o que se imagina ser a solução para a
necessidade. A confiança é um eixo teológico ao redor do qual se dá a qualidade
ética da invocação. Vejamos alguns de seus componentes:
·
A
psicologia explica como a segurança das pessoas se dá por uma confiança
fundamental interna, ameaçada pela necessidade, de onde brota a invocação.
·
A
confiança brota da experiência individual e comunitária convergindo para a
formação de códigos de confiança. Estes
são transmitidos pela fé e a devoção.
·
Em
toda invocação há sempre uma interpretação de nossas necessidades e também daquilo
que pode supri-las. Nem sempre esta interpretação é boa. Jesus disse uma vez “não
sabeis o que pedis” (Mc 10,38). Na Epístola de S.Tiago se se diz: “pedis, mas
não recebeis, porque pedis mal” (Tg 4, 3).
·
Nossos
códigos de confiança para as invocações pagam um forte tributo às
representações ou imagens que fazemos
de Deus, e especificamente de Nossa Senhora. As principais representações são
tiradas da experiência afetiva (Mãe);
do poder acima dos processos naturais (milagre); de comparações com
relacionamentos sociais (Rainha).
Com estas bases teóricas podemos
considerar mais de perto alguns desafios éticos, teológicos e pastorais da
invocação a Nossa Senhora.
- Da invocação a Maria à confiança fundamental em Deus
A figura de Maria, a Mãe de Jesus, é símbolo
de grandes realidades da fé, o que os estudos bíblicos explicam. A teologia
cristã e a devoção nas comunidades foram desdobrando ao longo da História
muitas figuras de Nossa Senhora, expressões devocionais e litúrgicas, doutrinas
e dogmas, que a Igreja foi selecionando e purificando. O Concílio Vaticano II (1962-1965) se ocupou
em promover uma renovação a este respeito e ofereceu diretrizes para a interpretação
da figura de Maria, a Mãe do Salvador, na vida da Igreja. Destacou a
necessidade de inserir sua compreensão dentro do Mistério da salvação cujo centro é o Amor de Deus revelado em Jesus
Cristo. E assim Maria é “sinal de esperança segura e conforto para o Povo de
Deus peregrino”.
Nesta renovação teológica da devoção a Maria fica claro que a sua invocação tem
legitimidade teológica cristã ao se referir ao Deus de Jesus, Salvador.
Na linha do Concílio, a Teologia atual
facilita aproximar as invocações a Maria, do eixo fundamental da fé revelado em
Jesus. Três exemplos: A figura de Maria
como Mãe se refere ao dado fundamental da fé e da confiança: o Amor de Deus nos
precede e persiste sempre, mesmo diante das infidelidades e erros. A figura de
Maria como exemplo de virtudes (Discípula) mostra o dado fundamental da fé como
discipulado, ou aprendizado constante. A figura de companheira “pelas estradas
da vida” seguindo Jesus (At 1,14) ressalta a vida em comunidade. Com este
esforço em refazer os sentidos da figura de Maria, temos boas perspectivas para
melhorar a qualidade ética e teológica de nossas invocações a Nossa Senhora.
- Rogai por nós: da negociação ao aprendizado
Como uma criança que aprende a pensar
antes de pedir, assim também aprendemos a invocar Nossa Senhora. Uma breve
análise da estrutura dos pedidos pode ajudar onde está o ponto central do
aprendizado.
Uma característica inicial da
invocação é a negociação mais ou
menos clara: pedimos, oferecemos algo em troca, agradecemos. Isto fica mais
claro quando a invocação inclui uma promessa. Mas na maioria dos casos, a
negociação é mais sutil, pois o “objeto da troca” é o afeto com que se
retribui. O ambiente religioso cristão, ao colocar as representações de Deus e
da comunidade em termos de “família”, contribui para se cultivar o afeto como
base da negociação nas invocações. Aparece
como devoção agradecida ou até fica clara quando a pessoa se sente desatendida
e abandona a devoção. Este é um contexto que a Teologia tecnicamente chama de
“teologia de retribuição”: pensa-se que a relação com o poder divino se dá sempre
em base de troca.
Esta radiografia da invocação não deve
amedrontar. Serve apenas de alerta para não se reduzir a invocação a Nossa
Senhora a uma negociação. Dando como que uma diretriz geral para os nossos pedidos,
Jesus ensina: “Buscai primeiro o Reino de Deus e a sua Justiça, e o resto vos
será dado por acréscimo” (Mt 6,33; Lc 12,31). A invocação a Nossa Senhora ajuda
a nos colocar no Amor grandioso de Deus ao enfrentarmos problemas e necessidades.
É um longo aprendizado assumir que não nos cabe impor nada a Deus; que o seu
Amor nos acompanha sempre; e que esta é a razão maior para não se perder a
confiança mesmo quando nossas expectativas não se realizam.
A necessidade é uma crise mais ou
menos forte na vida; e com a crise, a provocação de se purificarem os falsos
deuses das seguranças e o encontro com a confiança radical em Deus, como Jesus
proclamou na cruz: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”. Numa invocação
a Nossa Senhora está o desafio de se aprender a caminhar com confiança em Deus
em meio aos problemas.
- Rogai por nós, que queremos aprender.
A invocação a Nossa Senhora, como
vimos, não é sempre de boa qualidade moral. Os Evangelhos mostram como os
discípulos cultivavam desejos que só foram se purificando ao longo do
aprendizado. Discutiam pelo caminho quem seria o “maior entre eles” (Mc 10; Mt
20); e pouco antes da ascensão de Jesus ao Céu ainda perguntavam: “Senhor, é
agora que vais restabelecer a realeza em Israel?”. Assim também a invocação a
Nossa Senhora abre um aprendizado de vida. Vejamos alguns aspectos morais e
pastorais dessa caminhada em aprender a invocar:
a) Crescer na confiança é
a condição primeira –
Aqui a confiança se refere à bondade incondicional de Deus, figurada por Nossa
Senhora, bondade que cuida sempre do bem para todos nós. Desta confiança brota
a criatividade em reinventar a vida por entre as dificuldades e problemas. Dela
nasce a paz interior mesmo na aflição.
b) Assumir que nossa visão
é limitada, e as soluções que projetamos podem não ser as melhores. - É preciso saber invocar sempre sob a
condição de que aconteça o bem maior. Aos poucos aprendemos que pedir a Nossa
Senhora significa também uma busca de discernimento ou o esforço por saber o
que é o melhor, o que é mais correto e justo.
c) O básico de toda
invocação deve ser o pedido de sabedoria e forças para caminhar – A invocação que supera a simples
negociação se torna dinâmica na busca dos caminhos de superação dos problemas e
necessidades. Ela se torna um pedido de forças e luzes para superarmos os
problemas e encontrarmos soluções de Deus para nossas necessidades e fazermos a
nossa parte.
d)
Superar as ingenuidades nas
interpretações – O amadurecimento da devoção, pela qual se pede a ajuda
divina por Maria, leva a contar com os fatores humanos de onde nascem os problemas
e também de onde podem vir as suas soluções. Seria desastrosa a invocação que ignorasse
os meios humanos; pois Deus age entre nós por meios humanos.
e)
A invocação inclusiva – No centro
espiritual da invocação está o encontro com Deus pela devoção a Nossa Senhora,
através da figura de Mãe. Esta figura materna fala do carinho protetor, mas
também da “multidão de irmãos” entre os quais Jesus é o primogênito (Rm 8,29).
Isto reforça o critério da justiça e do amor para tornar ética a invocação.
Leva a amadurecer os pedidos de modo a superar visões egoístas que se fecham na
solução das próprias necessidades e na satisfação dos interesses particulares.
É ofensivo a Deus e contrário ao sentimento de uma Mãe o pedido que implicasse
prejuízo aos outros, ou mesmo uma visão mesquinha de quem pede para si e não
liga para outros que possam ter necessidades semelhantes.
f) Saber relativizar as
representações ou figuras de Maria, em vista do essencial – A invocação toma formas concretas em
palavras e gestos, ou atitudes, dentro de um conjunto simbólico. Somos seres
sensíveis e precisamos de representações para expressar realidades espirituais.
Ao mesmo tempo em que as representações nos servem para expressar as dimensões
espirituais da fé e da invocação, elas mostram também as condições ou
condicionamentos pelos quais nos expressamos. Quando invocamos Nossa Senhora
como “mãe” ou como “rainha”, estamos utilizando uma analogia ou comparação buscada, a primeira no ambiente familiar e
afetivo; a segunda num contexto sociológico de poder e dignidade. O essencial é
se estas figuras nos levam ao encontro com o Amor de Deus e sua Justiça, como
disse Jesus. Seria uma distorção se as representações de Nossa Senhora gerassem
em nós, por exemplo, os complexos de culpa, de dependência, de um poder como
que mágico, ou fossem motivo para
ódio ou desprezo de outras pessoas.
g) Saber distinguir e
respeitar na piedade popular os bons significados dos gestos e figuras que se
usam na invocação a Nossa Senhora. As
invocações aparecem através de gestos e representações, mas o essencial está no
sentido que elas carregam. Este sentido nem sempre é claro. Muitas palavras usadas nas invocações, p. ex. na ladainha de Nossa
Senhora, não são entendidas por quem reza. Mas isto não tem importância diante
da motivação que leva a pessoa a invocar. O mesmo ocorre com os gestos, p. ex.
promessas. São simbólicos, isto é, portadores de um significado essencial que
nem sempre é claro para quem vê. A invocação tem assim como que uma “roupagem” externa,
mas seu núcleo essencial pode ser surpreendente. Na pastoral, uma educação de
nossas formas de invocar é sempre útil e às vezes necessária; mas deve sempre
partir de uma atenção respeitosa aos significados que elas carregam.
h) A invocação sempre agradecida:
o contexto maior para a invocação – A ação de graças é um elemento que completa
a boa qualidade de toda e qualquer invocação. Isto fica muitas vezes implícito,
ou aparece às vezes como louvor, mas é importante que seja um reconhecimento
atuante na súplica. Não estamos falando de um agradecimento por graça recebida.
Trata-se de colocar o próprio pedido num sentimento de ação de graças. Este é o
melhor contexto para que o pedido já esteja alimentado pela confiança. A oração
do Pai Nosso começa exatamente assim; e mostra como se colocam nossas
necessidades no Amor maior de Deus por nós.
Em
síntese, na invocação a Nossa Senhora, temos oportunidade de aprender muito
sobre nós mesmos, e sobre os caminhos de nossa vida para Deus. Com Maria, nas
palavras do Papa Bento XVI, “somos capazes de
"sair" da “nossa casa", de nós mesmos, com coragem, para
alcançar os confins do mundo e anunciar em todos os lugares o Senhor Jesus,
Salvador do mundo".