terça-feira, 8 de maio de 2012

Aspectos ético-teológicos e pastorais da invocação à Virgem Maria



ROGAI POR NÓS


P. Márcio Fabri dos Anjos CssR


Rogai por nós é, na tradição cristã, uma conhecida forma de invocação à Maria e aos santos e santas. A invocação à Maria se distingue porque Ela é a mãe de Jesus, e recebe ao longo da História inúmeros títulos e representações desenvolvidas pela teologia e pelas devoções populares. Neste estudo estamos nos centrando apenas sobre a invocação à Maria, mas através desse ponto de partida, indiretamente colhemos elementos para entender também a intercessão.
Procuramos dar um enfoque ético-teológico, isto é, analítico e avaliativo do ponto de vista cristão católico; e não apenas verificativo sobre as formas de invocação que se encontram na piedade popular. Com alguns recortes interdisciplinares, buscamos elementos de análise da invocação. Tal modo analítico de proceder não visa obviamente destruir a fé e a piedade, mas exatamente lhe possibilitar melhor qualidade.

  1. Invocação: experiência da fragilidade e da confiança no poder divino
A relação com Nossa Senhora na invocação comporta três elementos básicos: fragilidade – poder – confiança. Estes elementos têm diferentes representações, ou seja, diferentes formas de se apresentarem e de as identificarmos em nossa existência. As fragilidades aparecem como necessidades passageiras, episódicas, ou também persistentes nas diferentes condições da vida.
As representações do poder em geral são seletivas e estão relacionadas com as necessidades. É interessante notar como a piedade popular atribui certa “especialidade” no poder de ajuda dos santos e das santas. No caso da invocação a Nossa Senhora se dá uma universalização desse poder que aparece, por exemplo, no título de “Perpétuo Socorro”. Mas há também especificações em alguns títulos com Consoladora dos aflitos, ou “Desatadora dos nós”.
Entre o poder e a necessidade se coloca a confiança. Ela não é passiva, pois além da iniciativa de pedir inclui a expectativa de alcançar o que se pede; e onde muitas vezes no pedido já está o que se imagina ser a solução para a necessidade. A confiança é um eixo teológico ao redor do qual se dá a qualidade ética da invocação. Vejamos alguns de seus componentes:
·         A psicologia explica como a segurança das pessoas se dá por uma confiança fundamental interna, ameaçada pela necessidade, de onde brota a invocação.
·         A confiança brota da experiência individual e comunitária convergindo para a formação de códigos de confiança. Estes são transmitidos pela fé e a devoção.
·         Em toda invocação há sempre uma interpretação de nossas necessidades e também daquilo que pode supri-las. Nem sempre esta interpretação é boa. Jesus disse uma vez “não sabeis o que pedis” (Mc 10,38). Na Epístola de S.Tiago se se diz: “pedis, mas não recebeis, porque pedis mal” (Tg 4, 3).
·         Nossos códigos de confiança para as invocações pagam um forte tributo às representações ou imagens que fazemos de Deus, e especificamente de Nossa Senhora. As principais representações são tiradas da experiência afetiva (Mãe); do poder acima dos processos naturais (milagre); de comparações com relacionamentos sociais (Rainha).
Com estas bases teóricas podemos considerar mais de perto alguns desafios éticos, teológicos e pastorais da invocação a Nossa Senhora. 

  1. Da invocação a Maria à confiança fundamental em Deus
A figura de Maria, a Mãe de Jesus, é símbolo de grandes realidades da fé, o que os estudos bíblicos explicam. A teologia cristã e a devoção nas comunidades foram desdobrando ao longo da História muitas figuras de Nossa Senhora, expressões devocionais e litúrgicas, doutrinas e dogmas, que a Igreja foi selecionando e purificando.  O Concílio Vaticano II (1962-1965) se ocupou em promover uma renovação a este respeito e ofereceu diretrizes para a interpretação da figura de Maria, a Mãe do Salvador, na vida da Igreja. Destacou a necessidade de inserir sua compreensão dentro do Mistério da salvação cujo centro é o Amor de Deus revelado em Jesus Cristo. E assim Maria é “sinal de esperança segura e conforto para o Povo de Deus peregrino”. Nesta renovação teológica da devoção a Maria fica claro que a sua invocação tem legitimidade teológica cristã ao se referir ao Deus de Jesus, Salvador.
Na linha do Concílio, a Teologia atual facilita aproximar as invocações a Maria, do eixo fundamental da fé revelado em Jesus. Três exemplos:  A figura de Maria como Mãe se refere ao dado fundamental da fé e da confiança: o Amor de Deus nos precede e persiste sempre, mesmo diante das infidelidades e erros. A figura de Maria como exemplo de virtudes (Discípula) mostra o dado fundamental da fé como discipulado, ou aprendizado constante. A figura de companheira “pelas estradas da vida” seguindo Jesus (At 1,14) ressalta a vida em comunidade. Com este esforço em refazer os sentidos da figura de Maria, temos boas perspectivas para melhorar a qualidade ética e teológica de nossas invocações a Nossa Senhora.

  1. Rogai por nós: da negociação ao aprendizado
Como uma criança que aprende a pensar antes de pedir, assim também aprendemos a invocar Nossa Senhora. Uma breve análise da estrutura dos pedidos pode ajudar onde está o ponto central do aprendizado.
Uma característica inicial da invocação é a negociação mais ou menos clara: pedimos, oferecemos algo em troca, agradecemos. Isto fica mais claro quando a invocação inclui uma promessa. Mas na maioria dos casos, a negociação é mais sutil, pois o “objeto da troca” é o afeto com que se retribui. O ambiente religioso cristão, ao colocar as representações de Deus e da comunidade em termos de “família”, contribui para se cultivar o afeto como base da negociação nas invocações. Aparece como devoção agradecida ou até fica clara quando a pessoa se sente desatendida e abandona a devoção. Este é um contexto que a Teologia tecnicamente chama de “teologia de retribuição”: pensa-se que a relação com o poder divino se dá sempre em base de troca.
Esta radiografia da invocação não deve amedrontar. Serve apenas de alerta para não se reduzir a invocação a Nossa Senhora a uma negociação. Dando como que uma diretriz geral para os nossos pedidos, Jesus ensina: “Buscai primeiro o Reino de Deus e a sua Justiça, e o resto vos será dado por acréscimo” (Mt 6,33; Lc 12,31). A invocação a Nossa Senhora ajuda a nos colocar no Amor grandioso de Deus ao enfrentarmos problemas e necessidades. É um longo aprendizado assumir que não nos cabe impor nada a Deus; que o seu Amor nos acompanha sempre; e que esta é a razão maior para não se perder a confiança mesmo quando nossas expectativas não se realizam.
A necessidade é uma crise mais ou menos forte na vida; e com a crise, a provocação de se purificarem os falsos deuses das seguranças e o encontro com a confiança radical em Deus, como Jesus proclamou na cruz: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”. Numa invocação a Nossa Senhora está o desafio de se aprender a caminhar com confiança em Deus em meio aos problemas.

  1. Rogai por nós, que queremos aprender.
A invocação a Nossa Senhora, como vimos, não é sempre de boa qualidade moral. Os Evangelhos mostram como os discípulos cultivavam desejos que só foram se purificando ao longo do aprendizado. Discutiam pelo caminho quem seria o “maior entre eles” (Mc 10; Mt 20); e pouco antes da ascensão de Jesus ao Céu ainda perguntavam: “Senhor, é agora que vais restabelecer a realeza em Israel?”. Assim também a invocação a Nossa Senhora abre um aprendizado de vida. Vejamos alguns aspectos morais e pastorais dessa caminhada em aprender a invocar:
a) Crescer na confiança é a condição primeira – Aqui a confiança se refere à bondade incondicional de Deus, figurada por Nossa Senhora, bondade que cuida sempre do bem para todos nós. Desta confiança brota a criatividade em reinventar a vida por entre as dificuldades e problemas. Dela nasce a paz interior mesmo na aflição.
b) Assumir que nossa visão é limitada, e as soluções que projetamos podem não ser as melhores. - É preciso saber invocar sempre sob a condição de que aconteça o bem maior. Aos poucos aprendemos que pedir a Nossa Senhora significa também uma busca de discernimento ou o esforço por saber o que é o melhor, o que é mais correto e justo.
c) O básico de toda invocação deve ser o pedido de sabedoria e forças para caminhar – A invocação que supera a simples negociação se torna dinâmica na busca dos caminhos de superação dos problemas e necessidades. Ela se torna um pedido de forças e luzes para superarmos os problemas e encontrarmos soluções de Deus para nossas necessidades e fazermos a nossa parte.
d) Superar as ingenuidades nas interpretações – O amadurecimento da devoção, pela qual se pede a ajuda divina por Maria, leva a contar com os fatores humanos de onde nascem os problemas e também de onde podem vir as suas soluções. Seria desastrosa a invocação que ignorasse os meios humanos; pois Deus age entre nós por meios humanos.
e) A invocação inclusiva – No centro espiritual da invocação está o encontro com Deus pela devoção a Nossa Senhora, através da figura de Mãe. Esta figura materna fala do carinho protetor, mas também da “multidão de irmãos” entre os quais Jesus é o primogênito (Rm 8,29). Isto reforça o critério da justiça e do amor para tornar ética a invocação. Leva a amadurecer os pedidos de modo a superar visões egoístas que se fecham na solução das próprias necessidades e na satisfação dos interesses particulares. É ofensivo a Deus e contrário ao sentimento de uma Mãe o pedido que implicasse prejuízo aos outros, ou mesmo uma visão mesquinha de quem pede para si e não liga para outros que possam ter necessidades semelhantes.
f) Saber relativizar as representações ou figuras de Maria, em vista do essencial – A invocação toma formas concretas em palavras e gestos, ou atitudes, dentro de um conjunto simbólico. Somos seres sensíveis e precisamos de representações para expressar realidades espirituais. Ao mesmo tempo em que as representações nos servem para expressar as dimensões espirituais da fé e da invocação, elas mostram também as condições ou condicionamentos pelos quais nos expressamos. Quando invocamos Nossa Senhora como “mãe” ou como “rainha”, estamos utilizando uma analogia ou comparação buscada, a primeira no ambiente familiar e afetivo; a segunda num contexto sociológico de poder e dignidade. O essencial é se estas figuras nos levam ao encontro com o Amor de Deus e sua Justiça, como disse Jesus. Seria uma distorção se as representações de Nossa Senhora gerassem em nós, por exemplo, os complexos de culpa, de dependência, de um poder como que mágico, ou fossem motivo para ódio ou desprezo de outras pessoas.
g) Saber distinguir e respeitar na piedade popular os bons significados dos gestos e figuras que se usam na invocação a Nossa Senhora. As invocações aparecem através de gestos e representações, mas o essencial está no sentido que elas carregam. Este sentido nem sempre é claro. Muitas palavras usadas nas invocações, p. ex. na ladainha de Nossa Senhora, não são entendidas por quem reza. Mas isto não tem importância diante da motivação que leva a pessoa a invocar. O mesmo ocorre com os gestos, p. ex. promessas. São simbólicos, isto é, portadores de um significado essencial que nem sempre é claro para quem vê. A invocação tem assim como que uma “roupagem” externa, mas seu núcleo essencial pode ser surpreendente. Na pastoral, uma educação de nossas formas de invocar é sempre útil e às vezes necessária; mas deve sempre partir de uma atenção respeitosa aos significados que elas carregam.
h) A invocação sempre agradecida: o contexto maior para a invocação  – A ação de graças é um elemento que completa a boa qualidade de toda e qualquer invocação. Isto fica muitas vezes implícito, ou aparece às vezes como louvor, mas é importante que seja um reconhecimento atuante na súplica. Não estamos falando de um agradecimento por graça recebida. Trata-se de colocar o próprio pedido num sentimento de ação de graças. Este é o melhor contexto para que o pedido já esteja alimentado pela confiança. A oração do Pai Nosso começa exatamente assim; e mostra como se colocam nossas necessidades no Amor maior de Deus por nós.
Em síntese, na invocação a Nossa Senhora, temos oportunidade de aprender muito sobre nós mesmos, e sobre os caminhos de nossa vida para Deus. Com Maria, nas palavras do Papa Bento XVI, “somos capazes de "sair" da “nossa casa", de nós mesmos, com coragem, para alcançar os confins do mundo e anunciar em todos os lugares o Senhor Jesus, Salvador do mundo".