terça-feira, 26 de junho de 2012

A novidade da fé bíblica







Antes de mais nada, temos a nova imagem de Deus. Nas culturas que circundam o mundo da Bíblia, a imagem de deus e dos deuses permanece, tudo somado, pouco clara e em si mesma contraditória. No itinerário da fé bíblica, ao invés, vai-se tornando cada vez mais claro e unívoco aquilo que a oração fundamental de Israel, o Shema, resume nestas palavras: « Escuta, ó Israel! O Senhor, nosso Deus, é o único Senhor! » (Dt 6, 4). Existe um único Deus, que é o Criador do céu e da terra, e por isso é também o Deus de todos os homens. Dois factos se singularizam neste esclarecimento: que verdadeiramente todos os outros deuses não são Deus e que toda a realidade onde vivemos se deve a Deus, é criada por Ele. Certamente a ideia de uma criação existe também alhures, mas só aqui aparece perfeitamente claro que não um deus qualquer, mas o único Deus verdadeiro, Ele mesmo, é o autor de toda a realidade; esta provém da força da sua Palavra criadora. Isto significa que esta sua criatura Lhe é querida, precisamente porque foi desejada por Ele mesmo, foi « feita » por Ele. E assim aparece agora o segundo elemento importante: este Deus ama o homem. A força divina que Aristóteles, no auge da filosofia grega, procurou individuar mediante a reflexão, é certamente para cada ser objecto do desejo e do amor — como realidade amada esta divindade move o mundo—, mas ela mesma não necessita de nada e não ama, é somente amada. Ao contrário, o único Deus em que Israel crê, ama pessoalmente. Além disso, o seu amor é um amor de eleição: entre todos os povos, Ele escolhe Israel e ama-o — mas com a finalidade de curar, precisamente deste modo, a humanidade inteira. Ele ama, e este seu amor pode ser qualificado sem dúvida como eros, que no entanto é totalmente agape também.
Sobretudo os profetas Oseias e Ezequiel descreveram esta paixão de Deus pelo seu povo, com arrojadas imagens eróticas. A relação de Deus com Israel é ilustrada através das metáforas do noivado e do matrimónio; consequentemente, a idolatria é adultério e prostituição. Assim, se alude concretamente — como vimos — aos cultos da fertilidade com o seu abuso do eros, mas ao mesmo tempo é descrita também a relação de fidelidade entre Israel e o seu Deus. A história de amor de Deus com Israel consiste, na sua profundidade, no facto de que Ele dá a Torah, isto é, abre os olhos a Israel sobre a verdadeira natureza do homem e indica-lhe a estrada do verdadeiro humanismo. Por seu lado, o homem, vivendo na fidelidade ao único Deus, sente-se a si próprio como aquele que é amado por Deus e descobre a alegria na verdade, na justiça — a alegria em Deus que Se torna a sua felicidade essencial: « Quem terei eu nos céus? Além de Vós, nada mais anseio sobre a terra (...). O meu bem é estar perto de Deus » (Sal 73/72, 25.28).
eros de Deus pelo homem — como dissemos — é ao mesmo tempo totalmente agape. E não só porque é dado de maneira totalmente gratuita, sem mérito algum precedente, mas também porque é amor que perdoa. Sobretudo Oseias mostra-nos a dimensão da agape no amor de Deus pelo homem, que supera largamente o aspecto da gratuidade. Israel cometeu « adultério », rompeu a Aliança; Deus deveria julgá-lo e repudiá-lo. Mas precisamente aqui se revela que Deus é Deus, e não homem: « Como te abandonarei, ó Efraim? Entregar-te-ei, ó Israel? O meu coração dá voltas dentro de mim, comove-se a minha compaixão. Não desafogarei o furor da minha cólera, não destruirei Efraim; porque sou Deus e não um homem, sou Santo no meio de ti » (Os 11, 8-9). O amor apaixonado de Deus pelo seu povo — pelo homem — é ao mesmo tempo um amor que perdoa. E é tão grande, que chega a virar Deus contra Si próprio, o seu amor contra a sua justiça. Nisto, o cristão vê já esboçar-se veladamente o mistério da Cruz: Deus ama tanto o homem que, tendo-Se feito Ele próprio homem, segue-o até à morte e, deste modo, reconcilia justiça e amor.
O aspecto filosófico e histórico-religioso saliente nesta visão da Bíblia é o facto de, por um lado, nos encontrarmos diante de uma imagem estritamente metafísica de Deus: Deus é absolutamente a fonte originária de todo o ser; mas este princípio criador de todas as coisas — o Logos, a razão primordial — é, ao mesmo tempo, um amante com toda a paixão de um verdadeiro amor. Deste modo, o eros é enobrecido ao máximo, mas simultaneamente tão purificado que se funde com aagape. Daqui podemos compreender por que a recepção do Cântico dos Cânticos no cânone da Sagrada Escritura tenha sido bem cedo explicada no sentido de que aqueles cânticos de amor, no fundo, descreviam a relação de Deus com o homem e do homem com Deus. E, assim, o referido livro tornou-se, tanto na literatura cristã como na judaica, uma fonte de conhecimento e de experiência mística em que se exprime a essência da fé bíblica: na verdade, existe uma unificação do homem com Deus — o sonho originário do homem —, mas esta unificação não é confundir-se, um afundar no oceano anónimo do Divino; é unidade que cria amor, na qual ambos — Deus e o homem — permanecem eles mesmos mas tornando-se plenamente uma coisa só: « Aquele, porém, que se une ao Senhor constitui, com Ele, um só espírito » — diz São Paulo (1 Cor 6, 17).
. Como vimos, a primeira novidade da fé bíblica consiste na imagem de Deus; a segunda, essencialmente ligada a ela, encontramo-la na imagem do homem. A narração bíblica da criação fala da solidão do primeiro homem, Adão, querendo Deus pôr a seu lado um auxílio. Dentre todas as criaturas, nenhuma pôde ser para o homem aquela ajuda de que necessita, apesar de ter dado um nome a todos os animais selvagens e a todas as aves, integrando-os assim no contexto da sua vida. Então, de uma costela do homem, Deus plasma a mulher. Agora Adão encontra a ajuda de que necessita: « Esta é, realmente, osso dos meus ossos e carne da minha carne » (Gn 2, 23). Na base desta narração, é possível entrever concepções semelhantes às que aparecem, por exemplo, no mito referido por Platão, segundo o qual o homem originariamente era esférico, porque completo em si mesmo e auto-suficiente. Mas, como punição pela sua soberba, foi dividido ao meio por Zeus, de tal modo que agora sempre anseia pela outra sua metade e caminha para ela a fim de reencontrar a sua globalidade.  Na narração bíblica, não se fala de punição; porém, a ideia de que o homem de algum modo esteja incompleto, constitutivamente a caminho a fim de encontrar no outro a parte que falta para a sua totalidade, isto é, a ideia de que, só na comunhão com o outro sexo, possa tornar-se « completo », está sem dúvida presente. E, deste modo, a narração bíblica conclui com uma profecia sobre Adão: « Por este motivo, o homem deixará o pai e a mãe para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne » (Gn 2, 24).
Aqui há dois aspectos importantes: primeiro, o eros está de certo modo enraizado na própria natureza do homem; Adão anda à procura e « deixa o pai e a mãe » para encontrar a mulher; só no seu conjunto é que representam a totalidade humana, tornam-se « uma só carne ». Não menos importante é o segundo aspecto: numa orientação baseada na criação, o eros impele o homem ao matrimónio, a uma ligação caracterizada pela unicidade e para sempre; deste modo, e somente assim, é que se realiza a sua finalidade íntima. À imagem do Deus monoteísta corresponde o matrimónio monogâmico. O matrimónio baseado num amor exclusivo e definitivo torna-se o ícone do relacionamento de Deus com o seu povo e, vice-versa, o modo de Deus amar torna-se a medida do amor humano. Esta estreita ligação entre eros e matrimónio na Bíblia quase não encontra paralelos literários fora da mesma.

Carta Encíclica - Bento XVI