segunda-feira, 25 de junho de 2012

A unidade do amor na criação e na história da Salvação




Um problema de linguagem

O amor de Deus por nós é questão fundamental para a vida e coloca questões decisivas sobre quem é Deus e quem somos nós. A tal propósito, o primeiro obstáculo que encontramos é um problema de linguagem. O termo « amor » tornou-se hoje uma das palavras mais usadas e mesmo abusadas, à qual associamos significados completamente diferentes. Embora o tema desta Encíclica se concentre sobre a questão da compreensão e da prática do amor na Sagrada Escritura e na Tradição da Igreja, não podemos prescindir pura e simplesmente do significado que esta palavra tem nas várias culturas e na linguagem atual.

Em primeiro lugar, recordemos o vasto campo semântico da palavra « amor »: fala-se de amor da pátria, amor à profissão, amor entre amigos, amor ao trabalho, amor entre pais e filhos, entre irmãos e familiares, amor ao próximo e amor a Deus. Em toda esta gama de significados, porém, o amor entre o homem e a mulher, no qual concorrem indivisivelmente corpo e alma e se abre ao ser humano uma promessa de felicidade que parece irresistível, sobressai como arquétipo de amor por excelência, de tal modo que, comparados com ele, à primeira vista todos os demais tipos de amor se ofuscam. Surge então a questão: todas estas formas de amor no fim de contas unificam-se sendo o amor, apesar de toda a diversidade das suas manifestações, em última instância um só, ou, ao contrário, utilizamos uma mesma palavra para indicar realidades totalmente diferentes?

« Eros » e « ágape » – diferença e unidade

 Ao amor entre homem e mulher, que não nasce da inteligência e da vontade, mas de certa forma impõe-se ao ser humano, a Grécia antiga deu o nome de eros. Diga-se desde já que o Antigo Testamento grego usa só duas vezes a palavra eros, enquanto o Novo Testamento nunca a usa: das três palavras gregas relacionadas com o amor — eros, philia (amor de amizade) e ágape — os escritos neo-testamentários privilegiam a última, que, na linguagem grega, era quase posta de lado. Quanto ao amor de amizade (philia), este é retomado com um significado mais profundo no Evangelho de João para exprimir a relação entre Jesus e os seus discípulos. A marginalização da palavra eros, juntamente com a nova visão do amor que se exprime através da palavra ágape, denota sem dúvida, na novidade do cristianismo, algo de essencial e próprio relativamente à compreensão do amor. Na crítica ao cristianismo que se foi desenvolvendo com radicalismo crescente a partir do iluminismo, esta novidade foi avaliada de forma absolutamente negativa. Segundo Friedrich Nietzsche, o cristianismo teria dado veneno a beber ao eros, que, embora não tivesse morrido, daí teria recebido o impulso para degenerar em vício. Este filósofo alemão exprimia assim uma sensação muito generalizada: com os seus mandamentos e proibições, a Igreja não nos torna porventura amarga a coisa mais bela da vida? Porventura não assinala ela proibições precisamente onde a alegria, preparada para nós pelo Criador, nos oferece uma felicidade que nos faz pressentir algo do Divino?

Mas, será mesmo assim? O cristianismo destruiu verdadeiramente o eros? Vejamos o mundo pré-cristão. Os gregos — aliás, de forma análoga a outras culturas — viram no eros sobretudo o inebriamento, a subjugação da razão por parte duma « loucura divina » que arranca o homem das limitações da sua existência e, neste estado de transtorno por uma força divina, faz-lhe experimentar a mais alta beatitude. Deste modo, todas as outras forças quer no céu quer na terra resultam de importância secundária: « Omnia vincit amor — o amor tudo vence », afirma Virgílio nas Bucólicas e acrescenta: « et nos cedamus amori — rendamo-nos também nós ao amor ». Nas religiões, esta posição traduziu-se nos cultos da fertilidade, aos quais pertence a prostituição « sagrada » que prosperava em muitos templos. O eros foi, pois, celebrado como força divina, como comunhão com o Divino.

A esta forma de religião, que contrasta como uma fortíssima tentação com a fé no único Deus, o Antigo Testamento opôs-se com a maior firmeza, combatendo-a como perversão da religiosidade. Ao fazê-lo, porém, não rejeitou de modo algum o eros enquanto tal, mas declarou guerra à sua subversão devastadora, porque a falsa divinização do eros, como aí se verifica, priva-o da sua dignidade, desumaniza-o. De fato, no templo, as prostitutas, que devem dar o inebriamento do Divino, não são tratadas como seres humanos e pessoas, mas servem apenas como instrumentos para suscitar a « loucura divina »: na realidade, não são deusas, mas pessoas humanas de quem se abusa. Por isso, o eros inebriante e descontrolado não é subida, « êxtase » até ao Divino, mas queda, degradação do homem. Fica assim claro que o eros necessita de disciplina, de purificação para dar ao homem, não o prazer de um instante, mas uma certa amostra do vértice da existência, daquela beatitude para que tende todo o nosso ser.

Dois dados resultam claramente desta rápida visão sobre a concepção do eros na história e na atualidade. O primeiro é que entre o amor e o Divino existe qualquer relação: o amor promete infinito, eternidade — uma realidade maior e totalmente diferente do dia-a-dia da nossa existência. E o segundo é que o caminho para tal meta não consiste em deixar-se simplesmente subjugar pelo instinto. São necessárias purificações e amadurecimentos, que passam também pela estrada da renúncia. Isto não é rejeição do eros, não é o seu « envenenamento », mas a cura em ordem à sua verdadeira grandeza.

Isto depende primariamente da constituição do ser humano, que é composto de corpo e alma. O homem torna-se realmente ele mesmo, quando corpo e alma se encontram em íntima unidade; o desafio do eros pode considerar-se verdadeiramente superado, quando se consegue esta unificação. Se o homem aspira a ser somente espírito e quer rejeitar a carne como uma herança apenas animalesca, então espírito e corpo perdem a sua dignidade. E se ele, por outro lado, renega o espírito e consequentemente considera a matéria, o corpo, como realidade exclusiva, perde igualmente a sua grandeza. O epicurista Gassendi, gracejando, cumprimentava Descartes com a saudação: « Ó Alma! ». E Descartes replicava dizendo: « Ó Carne! ». Mas, nem o espírito ama sozinho, nem o corpo: é o homem, a pessoa, que ama como criatura unitária, de que fazem parte o corpo e a alma. Somente quando ambos se fundem verdadeiramente numa unidade, é que o homem se torna plenamente ele próprio. Só deste modo é que o amor — o eros — pode amadurecer até à sua verdadeira grandeza.

Hoje não é raro ouvir censurar o cristianismo do passado por ter sido adversário da corporeidade; a realidade é que sempre houve tendências neste sentido. Mas o modo de exaltar o corpo, a que assistimos hoje, é enganador. O eros degradado a puro « sexo » torna-se mercadoria, torna-se simplesmente uma « coisa » que se pode comprar e vender; antes, o próprio homem torna-se mercadoria. Na realidade, para o homem, isto não constitui propriamente uma grande afirmação do seu corpo. Pelo contrário, agora considera o corpo e a sexualidade como a parte meramente material de si mesmo a usar e explorar com proveito. Uma parte, aliás, que ele não vê como um âmbito da sua liberdade, mas antes como algo que, a seu modo, procura tornar simultaneamente agradável e inócuo. Na verdade, encontramo-nos diante duma degradação do corpo humano, que deixa de estar integrado no conjunto da liberdade da nossa existência, deixa de ser expressão viva da totalidade do nosso ser, acabando como que relegado para o campo puramente biológico. A aparente exaltação do corpo pode bem depressa converter-se em ódio à corporeidade. Ao contrário, a fé cristã sempre considerou o homem como um ser uni-dual, em que espírito e matéria se compenetram mutuamente, experimentando ambos precisamente desta forma uma nova nobreza. Sim, o eros quer-nos elevar « em êxtase » para o Divino, conduzir-nos para além de nós próprios, mas por isso mesmo requer um caminho de ascese, renúncias, purificações e saneamentos.

Concretamente, como se deve configurar este caminho de ascese e purificação? Como deve ser vivido o amor, para que se realize plenamente a sua promessa humana e divina? Uma primeira indicação importante, podemos encontrá-la no Cântico dos Cânticos, um dos livros do Antigo Testamento bem conhecido dos místicos. Segundo a interpretação hoje predominante, as poesias contidas neste livro são originalmente cânticos de amor, talvez previstos para uma festa israelita de núpcias, na qual deviam exaltar o amor conjugal. Neste contexto, é muito elucidativo o fato de, ao longo do livro, se encontrarem duas palavras distintas para designar o « amor ». Primeiro, aparece a palavra « dodim », um plural que exprime o amor ainda inseguro, numa situação de procura indeterminada. Depois, esta palavra é substituída por « ahabà », que, na versão grega do Antigo Testamento, é traduzida pelo termo de som semelhante « ágape », que se tornou, como vimos, o termo característico para a concepção bíblica do amor. Em contraposição ao amor indeterminado e ainda em fase de procura, este vocábulo exprime a experiência do amor que agora se torna verdadeiramente descoberta do outro, superando assim o caráter egoísta que antes claramente prevalecia. Agora o amor torna-se cuidado do outro e pelo outro. Já não se busca a si próprio, não busca a imersão no inebriamento da felicidade; procura, ao invés, o bem do amado: torna-se renúncia, está disposto ao sacrifício, antes procura-o.

Faz parte da evolução do amor para níveis mais altos, para as suas íntimas purificações, que ele procure agora o caráter definitivo, e isto num duplo sentido: no sentido da exclusividade — « apenas esta única pessoa » — e no sentido de ser « para sempre ». O amor compreende a totalidade da existência em toda a sua dimensão, inclusive a temporal. Nem poderia ser de outro modo, porque a sua promessa visa o definitivo: o amor visa a eternidade. Sim, o amor é « êxtase »; êxtase, não no sentido de um instante de inebriamento, mas como caminho, como êxodo permanente do eu fechado em si mesmo para a sua libertação no dom de si e, precisamente dessa forma, para o reencontro de si mesmo, mais ainda para a descoberta de Deus: « Quem procurar salvaguardar a vida, perdê-la-á, e quem a perder, conservá-la-á » (Lc 17, 33) — disse Jesus; afirmação esta que se encontra nos Evangelhos com diversas variantes (cf. Mt 10, 39; 16, 25; Mc 8, 35; Lc 9, 24; Jo 12, 25). Assim descreve Jesus o seu caminho pessoal, que O conduz, através da cruz, à ressurreição: o caminho do grão de trigo que cai na terra e morre e assim dá muito fruto. Partindo do centro do seu sacrifício pessoal e do amor que aí alcança a sua plenitude, Ele, com tais palavras, descreve também a essência do amor e da existência humana em geral.

Inicialmente mais filosóficas, as nossas reflexões sobre a essência do amor conduziram-nos agora, pela sua dinâmica interior, à fé bíblica. Ao princípio, colocou-se o problema de saber se os vários, ou melhor opostos, significados da palavra amor subentenderiam no fundo uma certa unidade entre eles ou se deveriam ficar desligados um ao lado do outro. Mas, acima de tudo, surgiu a questão seguinte: se a mensagem sobre o amor, que nos é anunciada pela Bíblia e pela Tradição da Igreja, teria algo a ver com a experiência humana comum do amor ou se, pelo contrário, se opusesse a ela. A este respeito, fomos dar com duas palavras fundamentais: eros como termo para significar o amor « mundano » e ágape como expressão do amor fundado sobre a fé e por ela plasmado. As duas concepções aparecem frequentemente contrapostas como amor « ascendente » e amor « descendente ». Existem outras classificações afins como, por exemplo, a distinção entre amor possessivo e amor oblativo (amor concupiscentiæ – amor benevolentiæ), à qual, às vezes, se acrescenta ainda o amor que procura o próprio interesse.

No debate filosófico e teológico, estas distinções foram muitas vezes radicalizadas até ao ponto de as colocar em contraposição: tipicamente cristão seria o amor descendente, oblativo, ou seja, a ágape; ao invés, a cultura não cristã, especialmente a grega, caracterizar-se-ia pelo amor ascendente, ambicioso e possessivo, ou seja, pelo eros. Se se quisesse levar ao extremo esta antítese, a essência do cristianismo terminaria desarticulada das relações básicas e vitais da existência humana e constituiria um mundo independente, considerado talvez admirável, mas decididamente separado do conjunto da existência humana. Na realidade, eros e ágape — amor ascendente e amor descendente — nunca se deixam separar completamente um do outro. Quanto mais os dois encontrarem a justa unidade, embora em distintas dimensões, na única realidade do amor, tanto mais se realiza a verdadeira natureza do amor em geral. Embora o eros seja inicialmente sobretudo ambicioso, ascendente — fascinação pela grande promessa de felicidade — depois, à medida que se aproxima do outro, far-se-á cada vez menos perguntas sobre si próprio, procurará sempre mais a felicidade do outro, preocupar-se-á cada vez mais dele, doar-se-á e desejará « existir para » o outro. Assim se insere nele o momento da ágape; caso contrário, o eros decai e perde mesmo a sua própria natureza. Por outro lado, o homem também não pode viver exclusivamente no amor oblativo, descendente. Não pode limitar-se sempre a dar, deve também receber. Quem quer dar amor, deve ele mesmo recebê-lo em dom. Certamente, o homem pode — como nos diz o Senhor — tornar-se uma fonte donde correm rios de água viva (cf. Jo 7, 37-38); mas, para se tornar semelhante fonte, deve ele mesmo beber incessantemente da fonte primeira e originária que é Jesus Cristo, de cujo coração transpassado brota o amor de Deus (cf. Jo 19, 34).

Os Padres viram simbolizada de várias maneiras, na narração da escada de Jacob, esta conexão indivisível entre subida e descida, entre o eros que procura Deus e a ágape que transmite o dom recebido. Naquele texto bíblico refere-se que o patriarca Jacob num sonho viu, assente na pedra que lhe servia de travesseiro, uma escada que chegava até ao céu, pela qual subiam e desciam os anjos de Deus (cf. Gn 28, 12; Jo 1, 51). Particularmente interessante é a interpretação que dá o Papa Gregório Magno desta visão, na sua Regra pastoral. O bom pastor — diz ele — deve estar radicado na contemplação. De fato, só assim lhe será possível acolher de tal modo no seu íntimo as necessidades dos outros, que estas se tornem suas: « per pietatis viscera in se infirmitatem cæterorum transferat ». Neste contexto, São Gregório alude a São Paulo que foi arrebatado para as alturas até aos maiores mistérios de Deus e precisamente desta forma, quando desce, é capaz de fazer-se tudo para todos (cf. 2 Cor 12, 2-4; 1 Cor 9, 22). Além disso, indica o exemplo de Moisés que repetidamente entra na tenda sagrada, permanecendo em diálogo com Deus para poder assim, a partir de Deus, estar à disposição do seu povo. « Dentro [da tenda] arrebatado até às alturas mediante a contemplação, fora [da tenda] deixa-se encalçar pelo peso dos que sofrem: Intus in contemplationem rapitur, foris infirmantium negotiis urgetur ».
Encontramos, assim, uma primeira resposta, ainda bastante genérica, para as duas questões atrás expostas: no fundo, o « amor » é uma única realidade, embora com distintas dimensões; caso a caso, pode uma ou outra dimensão sobressair mais. Mas, quando as duas dimensões se separam completamente uma da outra, surge uma caricatura ou, de qualquer modo, uma forma redutiva do amor. E vimos sinteticamente também que a fé bíblica não constrói um mundo paralelo ou um mundo contraposto àquele fenômeno humano originário que é o amor, mas aceita o homem por inteiro intervindo na sua busca de amor para purificá-la, desvendando-lhe ao mesmo tempo novas dimensões. Esta novidade da fé bíblica manifesta-se, sobretudo em dois pontos que merecem ser sublinhados: a imagem de Deus e a imagem do homem.

Vaticano - Carta Encíclica Papa Bento XVI