Também
os honestos pais de família deveriam
enfiar humildemente a carapuça e fazer um exame de consciência, perguntando-se:
“A irritabilidade, o mal-estar, as brigas que há lá em casa, são devidas apenas
ao temperamento, às manias e às implicâncias da mulher, à irresponsabilidade e
às rebeldias malcriadas dos filhos? Não será que eu, com o «meu» comodismo
egoísta, não tenho também uma elevada cota de culpa na deterioração da paz
familiar?” Em noventa por cento dos casos, a resposta sincera a essa pergunta
deverá ser: “Sim”. E, após a resposta, convirá fazer um exame de consciência
para desmascarar o comodismo.
É
muito cômodo, por exemplo, regressar a casa após um dia de trabalho com a
consciência de que “agora chegou a hora merecida de descansar”. O pai entra no
lar. A carranca de “fatigado profissional” não convida muito a pedir-lhe coisa
alguma ou a contar com ele para nada. Entrincheira-se na poltrona, por trás de
um jornal, ou com os olhos perdidos no televisor, se não vai para o micro e
começa a navegar na Internet com a mesma avidez com que um garoto mergulha no
último jogo eletrônico japonês. Não escuta o que lhe dizem. Solta um grunhido
quando a mulher vai contar-lhe as tribulações do dia. Esquece-se de que ela tem
uma necessidade louca de desabafar, de ser compreendida, que precisaria de que
o marido a convidasse a dar uma voltinha, a conversar, a arejar-se, a ir ao
cinema ou a pegar um teatro interessante.
Pior
ainda quando esse “direito de descansar” consiste em apanhar garrafa e copo e
iniciar no sábado, à hora do almoço, a série de aperitivos que já se sabe como
vão terminar: com brigas e lágrimas da mulher, com cenas traumatizantes para
todos, por vezes violentas; com angústia e desprezo por parte dos filhos (como
me doeu na alma ouvir de uma boa menina, com vozinha aflita: – “Sabe, padre, o
meu pai não presta, ele bebe”!). O “profissional fatigado” bebe, vai
cambaleante para a cama, onde passará, no mínimo, uma tarde inteira dormindo a
sesta etílica. Depois, com ressaca e tontura, acabará de matar o fim de semana,
sem diálogo, sem passeio, sem carinho e sem alegria. O quadro – reconheço – é
carregado, mas reconheça também o leitor que não é totalmente irreal.
Mais
suave, mas não menos perturbador, é o caso do marido que não pode prescindir de
bater bola, mas pode prescindir de dedicar-se à mulher e aos filhos. Acabado o
jogo, diz ter necessidade de hidratar-se com uma cervejinha (ponham-se de cinco
a sete garrafas), o que o leva também à sesta reparadora e a uns resultados
muito parecidos com o do caso anterior.
O
egoísmo, às vezes, chega a ser tamanho, que a mulher percebe que o marido não a
considera senão como um objeto utilitário e um meio de prazer. Ela garante
mesa, roupa limpa, crianças cuidadas, cama e satisfação do apetite sexual. O
sultão deixa-se cuidar, exigente e mal-humorado. Só fica carinhoso e amável
quando quer sexo, e então a mulher – com toda a razão – se arrasa toda por
dentro, porque se sabe e se sente simplesmente usada, não amada.
Não
será sanha excessiva mencionar ainda mais um tipo de egoísmo masculino bem
comum? Para suavizar, falaremos dele literariamente. Tolstói descreve-o muito
bem na famosa novela A morte de Ivan Ilitch.
O magistrado que protagoniza a história percebe, após o nascimento do primeiro
filho, que a esposa se está tornando azeda, exigente e rabugenta. Não lhe
ocorre perguntar-se como compreendê-la e ajudá-la, mas como livrar-se o mais
possível das irritações dela (naquela época, o divórcio ainda não era moeda
corrente).
“À
medida que aumentavam a irascibilidade e as exigências da mulher – escreve
Tolstói –, Ivan Ilitch ia transportando o centro de gravidade da sua vida para
o trabalho [...]. Exigia da vida familiar tão só as comodidades que esta podia
dar-lhe [...]. Se tropeçava com alguma resistência ou mau-humor, imediatamente
seguia para o seu mundo particular, o do serviço, em que se achava à vontade
[...]. Todo o interesse da sua vida se concentrava no mundo do serviço. E esse
interesse o absorvia por inteiro”4. Não parece necessário acrescentar
mais nada: essa fuga do lar, refugiando-se no trabalho, é tão atual neste
século como no passado.
E,
com isto, encerramos a primeira parte desta obra. Como é lógico, uma descida
aos porões nunca é muito agradável, sobretudo se os porões são sombrios, como
os que acabamos de visitar. Mas, como essa visita foi apenas um passo prévio
para subir aos cimos, vamos guardar, de tudo o que vimos até aqui, um
pensamento muito claro. Tanto o orgulho como o egoísmo comodista coincidem num
ponto essencial: no culto ao “eu”, na colocação do “eu” como centro da vida familiar.
E, quando isso acontece, a paz familiar torna-se impossível. Esta constatação
servir-nos-á de pista de decolagem para a segunda parte, em que procuraremos
ganhar altura e adquirir uma perspectiva cristã sobre a vida familiar.
Pe. Francisco Faus